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O que o atentado contra Bolsonaro ensina sobre notícias falsas?

Carlos Affonso

12/09/2018 04h00

Foto: Bolsonaro fazia campanha quando foi atacado. Muita gente duvidou do que viu.

Primeiro as versões, depois o fato. Qual foi a sua primeira sensação ao tomar contato com a notícia de que o candidato Jair Bolsonaro havia sido vítima de um atentado com faca em Juiz de Fora? Preocupação (com a saúde do seu candidato)? Raiva direcionada contra o campo político rival? Alívio, já que o incidente poderia tirar o Deputado da corrida eleitoral e dar mais chances ao seu candidato favorito? Culpa, por ter sentido o alívio mencionado na resposta anterior?

O que a pergunta acima não revela é como essa notícia chegou até você. Foi através do noticiário na televisão ou no rádio? Será que foi na imprensa escrita? Grandes chances de que o primeiro contato veio mesmo pela internet e, em especial, via aplicativos de mensagem instantânea ou redes sociais. Sendo assim, a notícia pode já ter vindo envelopada com a apreciação de terceiros. Caraca! Olha só! Não acredito! Agora lascou! Miseráveis! Talvez esse tenha sido o seu ponto de partida.

O que vem a seguir é o passo fundamental para entender como vamos lidar com a desinformação na era em que estamos todos conectados. Na ânsia por compartilhar um fato que poderia ser da maior relevância para o futuro do país (já que o candidato lidera as pesquisas de intenção de voto), muita gente compartilhou sem ler, retuitou sem ver e encaminhou sem se importar. O mais relevante era fazer a informação girar rápido. Pouca importava a qualidade dela.

Assim as versões chegaram primeiro do que o fato. Enquanto ainda se apurava se houve mesmo a facada, quem era o agressor, qual o estado de saúde do candidato, as redes sociais já estavam repletas de acusações, teorias conspiratórias e prognósticos perversos.

Um fator que ajuda a difundir a desinformação é a súbita especialização do amigo internauta, que na semana anterior era especialista em incêndios e agora, aparentemente, sabe tudo sobre ferimentos causados com instrumentos perfurocortantes. Não faltou quem afirmasse que o atentado era fake porque não havia sangue na cena. Como não poderia haver sangue se nos filmes sempre tem?

Essa inversão é um símbolo curioso dos nossos tempos: a realidade precisa se submeter às regras da física e da biologia conforme apresentadas no cinema (e não ao contrário). Em um momento de verdadeira ficção científica pessoas sem qualquer formação em medicina legal começavam a questionar a veracidade do ocorrido a partir da ausência da sangue nos poucos vídeos e fotos disponíveis.

Para confirmar a convicção dos desinformados não tardou a aparecer uma foto com o candidato entrando porta adentro em um hospital trajando a mesma camisa e andando normalmente. Como alguém toma uma facada no fígado (local especulado do ferimento) e entra no hospital andando?? Era a prova definitiva de que era tudo uma farsa. Até, horas mais tarde, ficar comprovado que aquela foto havia sido tirada em visita feita pelo candidato a uma outra instituição médica mais cedo no mesmo dia.

Ah mas o cirurgião que atendeu o candidato na mesa de cirurgia estava sem luvas. Agora sim! Como pode um cirurgião operar sem luvas? Nem em Grey Anatomy (que é a coisa mais distante da rotina de um hospital) isso acontece. Em um tuíte o jornalista Ricardo Noblat apontou para o fato de que o médico estava sem luvas. Não era preciso muito mais para que todos os especialistas em uso de luvas em procedimentos médicos disponíveis naquele momento se juntassem para debater a foto.

Vale lembrar que a imprensa também fez o seu papel em fomentar a desinformação ao postar a foto do candidato na mesa de cirurgia. Era mesmo necessário publicar aquela foto? É surreal que uma foto como aquela seja tirada dentro de um centro cirúrgico no momento em que a vida do paciente está em jogo. Se foi um médico que tirou a foto ele ou ela deve ter infringido algum dispositivo do Código de Ética Médica. Hipócrates não deve estar feliz com isso. Se foi tirada por um familiar ou terceiro que estava acompanhando o procedimento, vale questionar o que fazia essa pessoa na sala, como conseguiu tirar a foto e com qual escrúpulo se utiliza dela.

Muitos vão argumentar que a foto de Bolsonaro na mesa de cirurgia foi então tirada como peça de campanha. Por mais triste que seja imaginar que alguém tira uma foto em um momento como aquele para virar material de campanha, pior serviço presta a imprensa ao recompensar o autor da foto ao estampá-la na capa dos jornais impressos e online. Além do apelo sensacionalista, a imprensa assim apenas estimula que mais pessoas passem a tirar fotos de pacientes em centros cirúrgicos enquanto eles lutam por suas vidas. O próximo passo serão as matérias que falam sobre a proibição de se tirar selfie nas urnas serem ilustradas justamente com fotos de eleitores tirando selfie nas urnas. Em breve!

A cadeia de desinformação é também nutrida pelos influenciadores, que usam a sua larga base de seguidores para espalhar uma versão própria (e nem sempre comprovada) do fato. No atentando envolvendo Bolsonaro, o pastor Silas Malafaia tweetou:

O homem detido pela polícia sob acusação de ter sido o autor do atentado contra o candidato, segundo o TSE, foi filiado ao PSOL entre 2007 e 2014, quando solicitou o seu desligamento. Ao ser questionado porque teria publicado a mensagem que liga o acusado ao PT e à Dilma o líder religioso reconheceu que: "Não tinha nada de Dilma, mas tem tudo em vários blogs, várias redes. Anunciou que ele estava apoiando, fazendo campanha pra ela, pô. Tá em rede social, eu só repliquei. Para bater nessa cambada."

Sites especializados em notícias falsas trabalharam dobrado nesse dia. Uma das "notícias" que procurou capitalizar em cima do fato foi a história de um jovem maranhense que, para provar que uma facada daquelas deveria ter extraído muito sangue, resolveu fazer o ferimento em si mesmo. O jovem teria morrido em decorrência da facada auto-infligida. O mesmo site que criou essa história é aquele responsável pela notícia falsa de um homem (também do Maranhão!) que teria morrido ao tentar viajar do Brasil até a Rússia para ver a Copa montado em um jumento.

No final das contas, o atentado contra Bolsonaro demonstrou a velocidade e o alcance das notícias falsas e da desinformação nas redes. É nesse momento que precisamos ficar mais atentos, procurar verificar se foi isso mesmo que aconteceu. Não se engane achando que esse será o último episódio de notícias falsas disseminadas em grande escala e quase instantaneamente nessas eleições. Quando a disputa afunilar para apenas dois candidatos, em um eventual segundo turno, vamos ver o surgimento de outros episódios como esse.

O atentado contra Bolsonaro foi um campo de testes. Hoje está claro que o incidente aconteceu. A facada não foi fake. Será que aprendemos a lição e estaremos prontos para reagir melhor da próxima vez? Ou as nossas convicções políticas e as emoções no calor do momento falarão mais alto e a versão, novamente, vai chegar primeiro que o fato?

Por fim, não deixa de ser curioso que Bolsonaro tenha recebido nas redes o apelido de Mito. Na história da filosofia, a explicação racional do mundo sucedeu as narrativas que explicavam tudo a partir da mitologia. As estações do ano não passam porque Deméter chora o rapto de Perséfone, nem o sol cruza os céus porque o deus Hélio está passeando em sua carruagem dourada. A mitologia sempre personaliza e cria narrativas para explicar as coisas do mundo.

Pelo visto não perdemos esse hábito. O atentado contra o "Mito" foi pródigo em criar histórias para explicar a nossa própria visão de mundo.

PS: Já que você está por aqui, recomendamos a leitura e o compartilhamento no grupo da família do nosso "Guia para não passar vergonha com fake news". Ele pode ser útil na próxima crise nacional de desinformação.

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Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.