Tecfront http://tecfront.blogosfera.uol.com.br Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ. Mon, 17 Aug 2020 19:28:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Vazamento de dados de menor parece ter acontecido para ofender a todos nós http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/08/17/vazamento-de-dados-de-menor-parece-ter-acontecido-para-ofender-a-todos-nos/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/08/17/vazamento-de-dados-de-menor-parece-ter-acontecido-para-ofender-a-todos-nos/#respond Mon, 17 Aug 2020 19:28:56 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1490

Crédito: Getty Images

A mãe faleceu e o pai está preso. O tio, que abusava sexualmente da criança de dez anos, está foragido. Ao se constatar a gravidez e as condições da criança, o aborto foi autorizado pelo Poder Judiciário. Tudo deveria correr em segredo de justiça. O final da história já se conhece: o nome da criança foi exposto nas redes sociais, indicando o hospital em que o procedimento seria realizado e o nome do médico responsável. Manifestantes foram para a porta do hospital intimidar o médico e políticos aproveitaram o momento para fazer palanque em cima da tragédia alheia.

Não era para essa coluna nem existir. O noticiário de hoje devia estar ocupado com notícias sobre o combate à pandemia, movimentações políticas, análises sobre a economia e resultados do futebol. Mas precisamos falar sobre dados pessoais no contexto do triste caso do aborto realizado em uma criança de dez anos violentada pelo tio.

Quem vazou o nome da criança? Vazou para quem? O responsável é funcionário público? Qual foi o elo fraco na cadeia que deveria proteger a intimidade da criança em um momento que ficará marcado por toda a sua vida? E o que passa na cabeça de quem recebe e divulga essa informação?

O segredo de justiça no Brasil tem muitos problemas. Usualmente o processo é indexado no sistema de busca dos tribunais, permitindo a quem possuir algumas outras informações desanonimizar o nome da pessoa envolvida. Outras vezes é a própria decisão que entrega a informação, como no caso do advogado que conseguiu, em processo que corria em segredo de justiça, ser excluído de programas de monitoramento de celulares para os fins de combate à Covid-19. A decisão do processo sigiloso revelava ao final o CPF do autor.

Não apenas o segredo de justiça é frágil, como também a falta de cultura de proteção de dados no Brasil faz com que informações pessoais circulem livremente. O mercado paralelo de dados pessoais funciona dia e noite nos camelódromos, nas redes e nos balcões de farmácia. Quer um desconto? Me informa o seu CPF, por favor.

Os dados pessoais da criança expostos na rede não se limitaram às publicações de Sara Giromini, mas foram também compartilhados por diversos seguidores. Vale lembrar que isso é uma violação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em seu artigo 17 protege “a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade.”

Caso o responsável pela violação seja funcionário público, o Código Penal prevê em seu artigo 325 que é crime punível com detenção de seis meses a dois anos, ou multa, “revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação.”

O Ministério Público do Estado do Espírito Santo conseguiu uma liminar para obrigar as redes sociais a remover as publicações que expunham a criança, pedindo ainda a preservação dos dados que identificam os autores das postagens. Essa medida, prevista do artigo 22 do Marco Civil da Internet, visa a conservar elementos que podem ser usados em processos posteriores contra os autores do conteúdo ofensivo.

Grande parte das plataformas possui em seus termos de uso a proibição de conteúdo que incite a violência ou que exponha as pessoas. No YouTube, por exemplo, existe uma política direcionada à “segurança infantil” e que considera proibido o envio de conteúdos que impliquem em “imposição de sofrimento emocional em menores”. Algumas das postagens até mesmo já foram apagadas antes da ordem judicial, aparentemente de forma espontânea por seus autores agora que o objetivo de exposição foi alcançado. Outras continuam no ar.

O vazamento de dados de um procedimento tão íntimo, autorizado pela Justiça e que envolve uma criança, é uma tragédia dentro da tragédia. E o circo político que se armou em volta do fato só agrava a situação. Quem vazou dados pessoais pode responder pelos danos causados à criança. Quem compartilhou esses mesmos dados na rede social também.

Os romanos tinham um brocardo que funda toda a noção de responsabilidade civil e vida em sociedade: “neminem laedere“, ou seja, a ninguém ofender. Quem divulga voluntariamente informação pessoal que expõe uma criança, agravando os danos de um procedimento em si já traumático, não poderia estar mais distante desse antigo brocardo. “A todos ofender” parece ser a versão moderna desse dizer, em especial quando a integridade física e psíquica de uma criança abusada sexualmente é usada para pautas políticas que favorecem a todos que delas se aproveitam, menos a própria criança.

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Meios de pagamento podem cancelar contas de Olavo de Carvalho? http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/08/07/meios-de-pagamento-podem-cancelar-contas-de-olavo-de-carvalho/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/08/07/meios-de-pagamento-podem-cancelar-contas-de-olavo-de-carvalho/#respond Fri, 07 Aug 2020 17:35:53 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1484

O cancelamento de Olavo de Carvalho pelo PayPal e a resistência do PagSeguro trazem algumas lições. A primeira é que as empresas podem ir se acostumando a fazer cada vez mais avaliações sobre direitos humanos. A segunda é que termos de uso não são declarações bonitas pra inglês ver e que, por fim, é preciso ter procedimento na sua aplicação.

Quando você cria uma empresa de meios de pagamento, talvez avaliações sobre direitos humanos e liberdade de expressão não pareçam estar dentre as suas principais atividades. Os tempos mudaram e essa tendência por mais escrutínio só vai aumentar. O que joga luz sobre as regras de atuação das empresas.

Se a empresa colocou nos seus termos de uso que é proibido que os usuários divulguem mensagens que incitem violência, ódio, que sejam caluniosas, ela deixou claro que tem o direito de remover esses conteúdos e essas contas. Essa decisão não é apenas jurídica, mas também comercial.

Mas de nada adianta ter declarações nos termos de uso se elas não são aplicadas. Ao contrário, em tempos bicudos como esses, a primeira linha de enfrentamento desses casos são as regras que as próprias empresas criaram. Foi-se o tempo em que essas regras eram apenas declarações de boas intenções penduradas em um link profundo de sites corporativos.

Muitas empresas estão descobrindo as próprias regras e aprendendo da forma mais difícil a sua importância e a urgência de se ter um procedimento padrão para sua aplicação. PayPal pode remover Olavo? Pode. PagSeguro pode manter Olavo? Pode. Mas ambas precisam esclarecer como os seus termos foram aplicados (pelo menos para os diretamente afetados no caso). Seja mantendo ou removendo uma conta, toda decisão tem o seu preço e essa avaliação passa a ser uma atividade crucial que mobiliza diversos setores da empresa, especialmente quando se está no meio de uma nova polêmica.

Uma matéria recente do UOL sobre a remoção da conta de Olavo de Carvalho pelo PayPal mostrou como o tema é complexo. Pessoalmente não acho que remover Olavo do PayPal é uma medida discriminatória por si só. Discriminação é fazer isso sem procedimento, sem dizer o que foi violado, e aplicar as regras de forma seletiva. O que vale para um deve valer para todos.

Ninguém disse que seria fácil. Tanto as empresas que derrubarem conteúdos e contas, como as que decidirem por sua manutenção, precisam se acostumar com a pressão que virá de todo lado. Ter um procedimento de avaliação transparente, informativo e coerente está deixando de ser um artigo de luxo e virando uma medida esperada por usuários e pelo público em geral.

Vale lembrar que termos de uso são contratos que as empresas celebram com seus usuários. Eles são as regras da casa. Mas que nessas relações também se aplicam as leis de cada país. Então autonomia privada, direitos fundamentais e sua aplicação também entram no debate.

Diferentes empresas vão enfrentar dilemas distintos. Uma coisa é a rede social na qual o conteúdo viraliza e pode chegar a qualquer usuário. Outra coisa é uma empresa que vende um conteúdo. A princípio só teria acesso ao mesmo quem pagasse por ele. Será que isso faz diferença na decisão?

Para se ter uma ideia de como a pressão pode mexer com as engrenagens de uma empresa, a MasterCard chegou a levar a voto internamente a criação de comitê de direitos humanos para avaliar remoção de contas de incitação à violência. A proposta foi derrotada.

Se não tiverem clareza sobre como aplicam as próprias regras, as empresas vão ser cada vez mais alvos de boicotes, ataques e acusações de parcialidade. É mais lenha na fogueira da cultura do cancelamento e isso atinge não só o CNPJ, mas também funcionários, diretores e clientes.

Não estou dando dica, nem sou Mãe Dináh, mas do jeito que a cultura do cancelamento anda acelerada, não seria de se espantar que ela chegasse no Judiciário. A análise combinatória fica então ainda mais complexa: canceladores buscando que a Justiça obrigue o cancelamento, cancelados procurando reverter o cancelamento, além de empresas querendo reconhecimento do direito de escolher ou não cancelar.

Uma parte desse futuro incerto pode ser contida desde já, com um esforço sincero por parte das empresas em dar vida às suas regras de atuação, tendo clareza de que, em tempos cada vez mais polarizados, toda decisão polêmica vai desagradar a um dos lados. Atuando de forma transparente, informativa e coerente pode-se –quem sabe?– vencer o debate e ter razão.

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Inquérito das fake news vai de “feitiço do tempo” à “lost in translation” http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/08/01/inquerito-das-fake-news-vai-de-feitico-do-tempo-a-lost-in-translation/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/08/01/inquerito-das-fake-news-vai-de-feitico-do-tempo-a-lost-in-translation/#respond Sat, 01 Aug 2020 18:24:54 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1475 Provando uma vez mais que vivemos um grande dia da marmota nessa quarentena, em mais uma sexta-feira o noticiário foi balançado por uma decisão do Ministro Alexandre de Moraes no inquérito das fake news e ataques ao STF. Na sexta passada o Ministro havia determinado o bloqueio de contas nas redes sociais dos investigados. Como o bloqueio apenas foi implementado no Brasil, e os conteúdos continuavam a ser visualizados no exterior, o Ministro agora determinou que os provedores promovam o bloqueio global das mesmas contas. 

STF interpreta e aplica a Constituição brasileira. Quando o Ministro Alexandre de Moraes afirma que as plataformas, ao remover contas só no Brasil (e não no mundo como um todo), cumpriram apenas PARCIALMENTE a sua decisão, ele entende que as leis brasileiras valem também para além das nossas fronteiras. Como assim?

Em primeiro lugar vale lembrar que o Ministro usou capslock para dizer na decisão que ele “DETERMINOU” o cumprimento da medida “INTEGRALMENTE”. Ou seja, bloquear as contas apenas para usuários que acessam às plataformas usando conexões advindas do Brasil não seria um modo de atender a decisão conforme desejado pelo Ministro. A sua intenção seria que as contas dos investigados não pudessem ser acessadas nem aqui nem em qualquer outro país. Mas será que um juiz brasileiro pode fazer com que a conta em rede social de um brasileiro seja bloqueada do mundo todo? Ou os efeitos dessa decisão deveriam ficar adstritos ao território nacional?

O debate sobre efeito extra-territorial das leis e ordens judiciais vem crescendo nos últimos anos. Estamos acostumados a falar que a Internet é uma “terra sem fronteiras”. Isso é um mito. A mesma rede que permite comunicação global dá meios para se preservar as fronteiras nela. E isso não é nada novo. 

Em 2000 o Tribunal de Grande Instância de Paris decidiu o caso LICRA x Yahoo!, no qual se discutia se memorabilia nazista vendida em site de leilão do réu poderia ser bloqueada especificamente para usuários acessando a Internet da França (país em que a venda de itens nazistas é proibida). A empresa alegou que isso era impossível, embora o laudo técnico nos autos já comprovasse que era sim viável identificar o país de onde vinha a conexão ao site e, assim, bloquear aqueles acessos provenientes da França.

Então a Internet é uma rede global, mas na qual as fronteiras dos países estão longe de serem irrelevantes. No Brasil existem diversos casos em que juízes acabam decidindo de modo a obrigar a remoção global de um conteúdo ou, ao contrário, determinando que ele seja apenas apagado para usuários acessando a rede no Brasil. O Tribunal de Justiça de São Paulo  já mandou o YouTube remover video globalmente, mas também já afirmou que “este juízo não detém jurisdição para determinar que o vídeo indicado na inicial não seja divulgado em território estrangeiro, tal como Colômbia e Alemanha sob pena de transportar o âmbito de sua competência e incidir em violação da soberania dos demais países.” (TJSP, Agravo de Instrumento nº 2.059.415-21.2016.8.26.0000). 

De modo semelhante, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu recentemente que o Google não deveria aplicar o chamado “direito ao esquecimento” pedido por um europeu em buscas realizadas fora da Europa.

Os efeitos extra-territoriais não surgem apenas em decisões judiciais, mas também em leis. O GDPR (regulamento de dados pessoais europeu) tem um caráter claramente expansionista. O PL2630, que corre na Câmara, daria para autoridades brasileiras acesso a servidores localizados no exterior. Vivemos uma época complexa em que todos querem uma rede global para poder abraçar o mundo, mas ao mesmo tempo garantindo que a sua soberania nacional seja nela respeitada. O que acontece quando o exercício da soberania de um Estado atinge a de outro?

Na Tailândia existem leis que proíbem críticas a integrantes da família real. A Rússia vive às voltas com uma lei que restringe “propaganda de relações sexuais não tradicionais” e que acaba sendo usada para censurar conteúdo ligados à comunidade LGBT. Imagine se um juiz na Tailândia pudesse exportar os efeitos de sua decisão com base nessa lei para todo o mundo? Ou um juiz russo? Acabaríamos nivelando a liberdade de expressão global pelo seu nível mais baixo.

Essa é a preocupação com a nova decisão proferida no inquérito das fake news: ela exporta os efeitos das nossas leis para outros países. Alguns podem dizer que ela está só impedindo um discurso danoso de brasileiros de “sair do País”, e que ela não impede pessoas de outros países de fazer o que bem quiserem. Ainda assim o resultado é preocupante e mostra como o conflito entre uma rede global e as fronteiras nacionais é um tema inescapável para refletir sobre o futuro da Internet.

Recentemente publicamos um estudo mostrando o estado atual desses conflitos na América Latina e no Caribe. A pesquisa foi apoiada pela CEPAL/ONU e pela Internet & Jurisdiction Policy Network. Um dos resultados mostra como as cortes supremas da região ainda não adotaram em larga escala decisões com efeitos extra-territoriais, mas os exemplos vindo de fora começam a gerar precedentes contraditórios nas cortes inferiores.

No filme “Feitiço do Tempo” (1993), Bill Murray é um metereologista que foi escalado para cobrir o evento do “dia da marmota” (groundhog day) em uma cidadezinha e acaba preso em uma armadilha temporal que o faz reviver o mesmo dia ininterruptamente. Lembra assim as últimas duas sextas-feiras, marcadas por decisões do Ministro Alexandre de Moraes no inquérito das fake news que mexeram com o noticiário.

Como aparentemente o Ministro queria que as contas dos investigados fossem removidas do mundo todo e os provedores entenderam que era para remover apenas no Brasil, outro filme da cinematografia de Bill Murray também pode ajudar a explicar a confusão: “Lost in Translation”, que no Brasil ficou traduzido como “Encontros e Desencontros” (2004). Vamos torcer para que os problemas de entendimento não levem a medidas mais duras, como bloqueio de aplicações que infelizmente marcam a história da Internet no Brasil. Vamos torcer também para que o feitiço do tempo seja quebrado, caso contrário você já sabe que vai encontrar um texto aqui no blog na próxima sexta-feira.

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Bloqueio de contas bolsonaristas pelo STF lembra o do WhatsApp e afeta você http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/07/25/bloqueio-de-contas-bolsonaristas-pelo-stf-lembra-o-do-whatsapp-e-afeta-voce/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/07/25/bloqueio-de-contas-bolsonaristas-pelo-stf-lembra-o-do-whatsapp-e-afeta-voce/#respond Sat, 25 Jul 2020 13:42:31 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1468

Se lembra daquela decisão do ministro Alexandre de Moraes que mandou bloquear de uma só vez contas de vários investigados naquele inquérito das fake news? Vai ser assim que vai começar muita conversa sobre internet, leis e liberdade de expressão em um futuro não tão distante. Pode anotar.

Fazendo história

A decisão cumprida nesta sexta-feira (24) pelas plataformas Twitter e Facebook, suspendendo as contas de uma dezena de investigados, é muito marcante. Ela lembra o bloqueio do YouTube e do WhatsApp, mas com uma diferença importante: lá atrás se bloqueava aplicações como um todo por conta de alguns conteúdos ilícitos. Agora foram bloqueadas as contas de certas pessoas para evitar ilícitos futuros.

Uma questão de proporcionalidade

Essa decisão traz pelo menos duas questões controvertidas. De início ela considera que a conta toda é uma ferramenta para praticar ilícitos. Ou seja, foram bloqueados conteúdos que podem ser discurso de ódio? Sim, mas também estão bloqueados foto de gato, troca de mensagem com a mãe e outros conteúdos protegidos por liberdade de expressão.

É uma questão de proporcionalidade: assim como você não deve derrubar o YouTube todo só por conta dos vídeos da Cicarelli, você não deveria bloquear toda a conta de alguém como se nela só fosse postado conteúdo ilícito. Isso pode estimular mais ordens judiciais generalizantes.

Sabe onde mais existe ordens generalizantes? No caso Marielle, que está no STJ para decidir se a polícia pode pedir dados de todo mundo que pesquisou pelo nome X para dentro desse universo encontrar o suspeito. Nessa rede de arrasto vão dados de quem nada tem a ver com o caso.

Prevendo o futuro

O segundo ponto controvertido da decisão é a questão do futuro. O bloqueio das contas se dá para impedir atos futuros de pessoas que são investigadas. Como podemos saber que essas pessoas continuariam a cometer ilícitos? Existe algo nas investigação que aponte a iminência de novos ataques? A decisão de maio do ministro apontava para uma organização entre as contas, atuando junto com outras contas automatizadas para subir hashtags e conteúdos ofensivos ao STF. O problema é a enunciação genérica de que o bloqueio visa a prevenir ilícitos futuros.

Os bloqueados podem usar outras contas?

Vale ainda se perguntar: se a ordem judicial é para bloquear determinadas contas, existe algum impedimento de que essas mesmas pessoas criem novas contas? E se não fossem contas pessoais, mas sim de canais ou blogs alheios, não poderiam continuar a cometer os ilícitos?

Ficou a impressão de que a ordem judicial original (que ordenou às plataformas que removessem as contas apenas indicando o nome e o CPF do investigado) visava banir os investigados das redes sociais. Dada a sua generalidade, as plataformas pediram que as contas fossem especificadas. Ao fazer assim, será que a ordem judicial ainda atende o objetivo?

Ou será que, mesmo sabendo que investigados poderão postar por outros meios, a ordem serviu ao propósito de mandar um recado sobre a continuidade de ilícitos cometidos enquanto corre a investigação? Vale lembrar que Sara Winter fez postagens jocosas depois que saiu da prisão.

Então a decisão de hoje é emblemática porque:

1) reforça o debate sobre ordens genéricas e não específicas;

2) mexe com a noção de prevenção a ilícitos futuros; e

3) aceita ser ser pouco efetiva, contanto que se dê um recado.

Pode sobrar para você

Meu receio é que, ao perceber que os investigados vão continuar a usar as redes por outras contas, o STF ressuscite o bloqueio de apps.

O Supremo Tribunal Federal está no meio de um julgamento sobre a possibilidade de bloqueio de aplicações (derivado das sucessivas suspensões do WhatsApp). Os ministros Edson Fachin e Rosa Weber já votaram, mas o julgamento foi suspenso por pedido de vista. Sabe quem pediu vista? O ministro Alexandre de Moraes.

Ou seja, o debate sobre bloqueio de sites e aplicações como um todo está longe de ter sido enterrado. Já imaginou se o inquérito das fake news termina virando mais um daqueles episódios em que um site ou app como um todo é bloqueado no Brasil, deixando todo mundo do lado de fora sem poder acessar as suas contas? E você imaginando que jamais teria algo em comum com um grupo de investigados.

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O que difere a ação de perfis bolsonaristas no Facebook e de fãs do K-pop? http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/07/10/o-que-difere-a-acao-de-perfis-bolsonaristas-no-facebook-e-de-fas-do-k-pop/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/07/10/o-que-difere-a-acao-de-perfis-bolsonaristas-no-facebook-e-de-fas-do-k-pop/#respond Fri, 10 Jul 2020 13:00:47 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1457

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O mundo é cheio de comparações e a gente lida com elas a todo instante. Gosto mais disso ou daquilo? Vou fazer uma coisa ou seria melhor fazer outra? Quase sem querer, começamos a organizar a nossa forma de ver o mundo. Comparações também são ferramentas poderosas para explicar conceitos complexos. Colocando duas ou mais situações do lado da outra fica mais fácil entender onde estão as semelhanças e onde residem as diferenças. E quanto mais inusitada for a comparação, mais fácil fica lembrar do conceito.

Esse é o caso da remoção das contas e páginas bolsonaristas recentemente anunciada pelo Facebook e sua comparação com o movimento coordenado de K-poppers a favor de uma causa. O Facebook revelou que as contas foram removidas por terem sido identificadas como pertencentes a uma rede de comportamentos inautênticos coordenados (em inglês, coordinated inauthentic behavior – CIB). Guarde esse termo.

Você pode então se perguntar: por que o Facebook derrubou as páginas favoráveis ao Bolsonaro e não derrubou as contas envolvidas em outros movimentos coordenados? Um bom exemplo seria a atuação de K-poppers que se coordenaram para reservar tickets para um comício de Donald Trump, sem ter qualquer intenção de lá comparecer, deixando o evento relativamente esvaziado. Seria dois pesos e duas medidas? A resposta não está na “coordenação”, mas sim no “inautêntico”.

Os fãs de K-pop (e também usuários de TikTok) que se coordenaram para esvaziar o comício de Donald Trump não ocultaram a sua identidade nessa ação. Ao contrário, eles acabaram dando os seus números de celular para a campanha republicana ao reservar um assento no comício e depois comemoraram nas redes de forma bastante pública.

O diretor de políticas de segurança do Facebook já afirmou que uma peça central para identificar comportamento inautêntico coordenado na plataforma é o uso de contas falsas, duplicadas, que servem para aumentar a audiência umas das outras, enganando o público. Foi exatamente o que motivou a remoção de contas ligadas a políticos no Brasil (e em outros países).

Um segundo ponto chama atenção também nessa remoção realizada pelo Facebook. Muitas pessoas estão achando que a empresa removeu as páginas e contas por causa dos seus conteúdos, mas a raiz da análise não está no conteúdo e sim no ato de criar contas falsas que se retroalimentam. Essa diferença entre comportamento e conteúdo é essencial também no debate do PL2630, chamado de PL das fake news.

O ministro Luis Roberto Barroso, que preside atualmente o TSE, vem repetindo que o foco do combate às fake news é a identificação de comportamentos e não de conteúdos. Sabe por que isso é importante? Porque filtros automatizados são bons em pegar comportamentos, mas erram muito ao mirar em conteúdo.

As máquinas sabem reconhecer padrões e atuar em cima deles, mas falham muito ao procurar entender o contexto em que um conteúdo se insere e avaliar a sua ilicitude. Em um mundo no qual a moderação nas redes sociais vai ser cada vez mais automatizado, é uma boa ideia que esse controle seja feito mais no reconhecimento de padrões de comportamento do que no conteúdo em si. Isso reduz o risco de estarmos automatizando a censura.

Se você não gosta de filtragem baseada em comportamento pode desabilitar o filtro do seu Gmail que identifica e limpa tudo que é spam da sua caixa de entrada. O risco de se esbarrar na liberdade de expressão quando se foca em comportamento – e não em conteúdo – é muito menor.

Então ficam duas lições das remoções anunciadas pelo Facebook :

  1. o que é (e o que não é) comportamento inautêntico coordenado (obrigado K-pop por ajudar na explicação!);
  2. bloqueio baseado em comportamento é mais efetivo (e menos perigoso para a liberdade de expressão) do que aquele que leva em consideração o conteúdo em si.

Assim fica mais clara a utilidade da comparação entre a coordenação dos K-poppers e aquela feita através de contas falsas, duplicadas, que servem para artificialmente aumentar a audiência de um assunto nas redes. O núcleo do conceito de comportamento inautêntico coordenado – que é proibido em muitas redes sociais – não está na coordenação, mas sim na autenticidade.

Comparações fazem o mundo rodar, estão em toda parte e explicam conceitos complexos. É como diz a última música das BLACKPINK, sucesso do K-pop: “Olhe pra mim/Agora olhe pra você/Olhe pra mim/Agora olhe pra você.” As interpretações da música divergem, mas certamente ali também existe um conceito a procura de explicação.

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Indiretas, elogios e desabafos: PL das fake news causou rebuliço no Senado http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/07/07/indiretas-elogios-e-desabafos-pl-das-fake-news-causou-um-climao-no-senado/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/07/07/indiretas-elogios-e-desabafos-pl-das-fake-news-causou-um-climao-no-senado/#respond Tue, 07 Jul 2020 07:00:05 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1437

Senadores participam de sessão que votou o projeto de lei contra as fake news (Jefferson Rudy/Agência Senado)

A aprovação pelo Senado do PL nº 2630/2020, sobre fake news e transparência na internet, dividiu opiniões. Os defensores da proposta afirmam que o texto traz proteções importantes para os usuários da rede contra conteúdos falsos e práticas ilícitas, ao passo que os opositores do PL afirmam que ele restringe a liberdade de expressão, ameaça a privacidade e afasta investimentos do país.

Se existe dúvida sobre o acerto do PL, não há como discordar do fato de que a sessão deliberativa que terminou com a sua aprovação foi bastante movimentada. Chamaram atenção alguns lances inusitados, como os títulos dos livros exibidos nas estantes atrás dos senadores e a forma de interação entre os congressistas em sessões remotas.

Particularmente tenho minhas reservas com a redação que saiu do Senado, especialmente no que diz respeito ao regime de responsabilização na rede e o aumento na guarda de dados pessoais. Mas este texto aqui não se presta a opinar sobre o conteúdo da proposta, mas sim recordar alguns detalhes da sessão deliberativa que podem ter escapado para quem não ficou mais de quatro horas grudado na transmissão da TV Senado.

Separamos aqui alguns desses momentos que ajudam a entender a temperatura das discussões e o que pode vir pela frente quando o texto, muito provavelmente, retornar ao Senado depois da sua passagem pela Câmara dos Deputados.

“Ripa na chulipa e pimba na gorduchinha”

A missão do senador Angelo Coronel exigia fôlego, já que como relator do substitutivo era preciso, além de apresentar o seu texto, cobrir a análise de centenas de emendas que foram apresentadas ao PL, destacando o nome de seu autor e se ela foi acatada ou recusada.

O esforço de locução do senador foi de fazer inveja a muitos narradores esportivos, acelerando a leitura em alguns pontos e inserindo dramaticidade em outros. O fato da leitura ocorrer em transmissão remota só aumentou o efeito de narração esportiva.

Queridos todos

O senador Mecias de Jesus é “uma figura alegre, uma figura inteligente, uma figura cativante”. Já o senador Marcos do Val é “o homem da Swat do Congresso Nacional”. A leitura do relatório pelo senador Angelo Coronel contou também com um inventário de qualificações que o mesmo foi inserindo a cada nova menção a um de seus colegas que havia proposto emendas.

Dessa maneira, a leitura do relatório ofereceu uma certa janela para a composição do Senado, através dos comentários afetuosos e por vezes bem-humorados do relator. Foi difícil acompanhar todas as menções ao vivo, mas as notas taquigráficas da sessão estão aí para isso mesmo. Para quem perdeu, segue a lista:

  • Randolfe Rodrigues – “uma mente pródiga“, “um dos homens mais inteligentes do Congresso Nacional
  • José Serra – “homem que revolucionou a saúde com o fomento da indústria dos genéricos
  • Jean Prates – “um dos grandes colaboradores para que este substitutivo saísse, com sua maneira tranquila, prática, conciliadora”
  • Eliziane Gama – “grande guerreira”, “uma das mentes pródigas nesta Casa”
  • Vanderlan Cardoso – “querido Senador do PSB, do Estado de Goiás, baiano, rondoniense, roraimense”, “muito me honra ser seu amigo”
  • Styvenson Valentim – “querido amigo”, “uma das revelações deste Congresso”
  • Fabiano Contarato – “uma das figuras de proa deste Congresso Nacional”, “talvez uma das pessoas que tenha uma sensibilidade pela qual nos cause até inveja”
  • Humberto Costa – “um dos Senadores mais aguerridos dessa Casa”
  • Dário Berger – “uma das pessoas de proa também desse Parlamento”
  • Jorge Kajuru – “grande radialista, comunicador, homem realmente que muito honra o Senado da República”
  • Jaques Wagner – “ex-Governador da Bahia por dois mandatos consecutivos, que conseguiu mudar a história da Bahia há 16 anos”
  • Rodrigo Cunha – “jovem senador”, “uma pessoa focada e inteligente”
  • Mecias de Jesus – “uma figura alegre, uma figura inteligente, uma figura cativante”
  • Zequinha Marinho – “figura que cativa todos nós
  • Wellington Fagundes – “meu amigo de longa data lá de nossa querida Rondonópolis”, “esposo da minha querida amiga Mariene Fagundes”
  • Jader Barbalho – “grande líder do Estado do Pará”
  • Fernando Collor – “grande Presidente”, “revolucionou o sistema automobilístico do Brasil!”
  • Weverton Rocha – “grande senador, líder do Estado do Maranhão, que muito honra esta Casa, meu amigo pessoal
  • Esperidião Amin – “nobre senador”, “com quem hoje tivemos o prazer de um debate, pela manhã, numa emissora de rádio
  • Luiz do Carmo – “nosso empresário goiano amigo
  • Marcos do Val – “o grande e jovem Marcos do Val”, “o homem da Swat do Congresso Nacional”
  • Zenaide Maia – “a nossa doutora, infectologista, uma grande mãe e grande política
  • Eduardo Gomes – “grande amigo do Tocantins”, “fazendo um excelente trabalho como Líder do Governo
  • Paulo Rocha – “uma das figuras mais focadas, calma, tranquila e abalizada deste Parlamento”
  • Daniela Ribeiro – “grande parceira do relatório
  • Kátia Abreu – “guerreira Senadora do Estado do Tocantins”, “ex-Ministra”
  • Leila Barros – “grande desportista, um dos orgulhos do Brasil nas quadras e que hoje vem orgulhando o Brasil também dentro do Parlamento”

Livros que falam

Tenho o péssimo hábito de reparar nas estantes alheias. Se isso já era um traço inconveniente na época em que se visitava a casa dos outros, agora tudo ficou mais complicado na quarentena quando o interior da casa de ministros, deputados, senadores e jornalistas passou a aparecer com mais frequência em programas, sessões e entrevistas. As estantes, assim como as casas, nunca são arrumadas impunemente. Quando a casa é muito arrumada parece que ninguém mora lá e aquela organização toda serve a um propósito.

Da mesma forma, os livros que aparecem nas estantes de quem fala na televisão podem não ter ido parar lá naturalmente. Ao contrário, eles são ali colocados para mandar um recado, para passar mensagens. Acontece sempre.

Na sessão que aprovou o PL2630, o senador Plínio Valério começou alertando que o Senado estava votando o texto de forma apressada e que havia uma divergência importante sobre a sua procedência. Atrás dele, ali em pé na estante, estava o livro “A Arte da Prudência”, de Baltasar Gracián, naquela edição econômica da Martin Claret que serve como livro e como exame oftalmológico ao mesmo tempo. São duas formas de endereçar problemas de visão. Coincidência ou recado?

 Mais adiante, quando já se havia decidido pela votação, saiu de cena “A Arte de Prudência” para dar lugar ao livro “Como as Democracias Morrem”, de Levitsky e Ziblatt. Quem sabe no futuro os escafandristas não vão descobrir vestígios da nossa estranha civilização em que os congressistas se comunicavam através de livros na estante?

Posso estar enganado, mas acho que vi um “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, em pé na estante de madeira, no canto esquerdo, que estava atrás do senador Álvaro Dias. Era aquela edição de capa branca antiga da Record, com prefácio do James Clavell. Sucesso nos sebos. Lembrando que “A Arte da Guerra” não é um livro sobre regulação.

(Jefferson Rudy/Agência Senado)

O que vem pela frente?

Alguns senadores manifestaram a sua discordância sobre a forma pela qual se deu a votação, sem passar por comissões dado o regime excepcional de funcionamento do Senado, além de tecer críticas ao conteúdo do projeto em si. Segundo o senador Major Olímpio, “estamos matando a vaca para acabar com o carrapato.”

O senador Espiridião Amin lembrou que o texto do PL foi votado “com o fígado”, já que muitos senadores buscaram no texto criar ferramentas para impedir que ataques sejam perpetrados pela rede a partir de suas experiências pessoais, muitas das quais relatadas durante a sessão.

O senador Alessandro Vieira, autor do projeto no Senado, comemorou a aprovação publicando algumas das medidas que constam do projeto.

A próxima etapa do PL é a sua tramitação na Câmara dos Deputados. Por lá, o presidente da casa Rodrigo Maia já indicou que o texto receberá prioridade.

O presidente Jair Bolsonaro, a quem caberá por fim sancionar ou vetar dispositivos do PL, disse em uma live achar que o projeto “não vai vingar” e questionou se o mesmo não deveria passar por uma “consulta popular”.

Vamos acompanhar o que dirão os deputados (e os livros de suas estantes).

Por falar em estante, enquanto o presidente Bolsonaro falava sobre o PL na sua live, a estante lá atrás exibia uma série de livros antigos, finamente encadernados, além de dois calendários da Caixa Econômica e o presidente da Embratur com a sua sanfona. Seria coincidência ou mais um recado?

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PL das fake news vai impedir 1 em cada 5 brasileiros de usar redes sociais http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/06/25/pl-das-fake-news-vai-impedir-1-em-cada-5-brasileiros-de-usar-redes-sociais/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/06/25/pl-das-fake-news-vai-impedir-1-em-cada-5-brasileiros-de-usar-redes-sociais/#respond Thu, 25 Jun 2020 15:24:21 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1431

Crédito: Caio Rocha/Framephoto/Estadão Conteúdo

O Senado está prestes a votar o PL 2630/20, que procura combater as fake news. A menos de 24 horas da votação, o relator apresentou um texto substitutivo que, se aprovado, vira a internet de ponta-cabeça.

O artigo 7º do texto divulgado pelo Senador Angelo Coronel (PSD-BA) vai exigir a apresentação de documento de identidade e número de celular para que todo brasileiro possa usar redes sociais e aplicativos de mensagem instantânea. Ou seja: sem RG e celular você não pode mais ter uma conta em aplicativos populares como Facebook, WhatsApp, Twitter, Tinder e Instagram.

O texto está redigido assim: “Art. 7º O cadastro de contas em redes sociais e nos serviços de mensageria privada deverá exigir do usuário documento de identidade válido, número de celular registrado no Brasil e, em caso de número de celular estrangeiro, o passaporte.”

A medida é, antes de mais nada, discriminatória porque cria uma barreira para a inclusão digital no País. Segundo o IBGE, um em cada cinco brasileiros não possui um aparelho celular. Ao criar essa exigência, o PL 2630 acaba de excluir esses brasileiros do uso justamente dos aplicativos mais populares. São os mais pobres que não vão poder mandar mensagens ou manter contato com familiares e amigos nas redes sociais.

Se a Internet é cada vez mais essencial para o exercício da cidadania, o PL institucionaliza um gargalo tecnológico que só faz reforçar a constatação de que alguns brasileiros podem exercer mais a cidadania do que os outros.

Além disso, a exigência de identidade e celular para criar conta em rede social e aplicativos de mensagem é uma medida ineficaz para combater ilícitos. Uma parte expressiva das fraudes e golpes na Internet acontece porque dados pessoais foram obtidos por criminosos que usam essas informações para (adivinhe?) abrir contas, contrair empréstimos, dentre outras atividades sem que o real titular desses dados faça ideia. Depois chega a conta.

Para piorar, ao exigir que aplicativos de redes sociais e de mensagem instantânea guardem esses dados, o PL parece desconhecer a realidade brasileira de incidentes de segurança e vazamento de dados. Por isso, a medida é também insegura. Quanto mais plataformas precisarem pedir e guardar informações como nome da pessoa, identidade e número de celular, mas fácil será a vida de criminosos e fraudadores em geral, que já receberão essas informações estruturadas em qualquer vazamento de dados futuro.

Vale lembrar que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13709/18) vai no sentido oposto ao apontar para a minimização de dados, sendo requerido apenas o necessário para o funcionamento das aplicações. Quanto mais dados se guarda, maior o dano em caso de vazamentos e outros incidentes de segurança.

O texto do PL ainda chama atenção por incorporar no texto da lei um recurso tecnológico que existe hoje, mas amanhã pode muito bem estar superado: o SMS. Segundo o PL, para validar a identidade do usuário, “os provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada deverão enviar por SMS código de verificação ao número de celular informado.” (art. 7º, §1º) Uma lei sobre tecnologia não deve se amarrar em um formato específico se não quiser caducar.

Por fim, se você pratica abstinência de redes sociais e aplicativos de mensagem e está achando que vai se livrar de entregar seus dados, é importante destacar que, segundo o PL, entra também na definição de redes sociais a “aplicação de internet que oferece funcionalidades de publicação de conteúdo por usuários e interação entre eles, sem que haja controle editorial prévio”.

Ou seja, sites de comércio eletrônico que permitem comentários em postagens alheias também entrariam na medida, como Mercado Livre e Amazon, por exemplo. Basta permitir que usuários possam postar comentários sobre os produtos e que outras pessoas possam avaliar esses comentários.

Razões não faltam para o Senado abandonar essa ideia de exigir a informação de identidade e número de celular para usar redes sociais e aplicativos de mensagem. Não chegamos nem a falar sobre como isso estimula também o vigilantismo online.

Ao procurar tornar a Internet um lugar mais seguro, com todo mundo andando de crachá nas redes, o PL acaba estimulando mais insegurança através de uma medida que é igualmente ineficaz e discriminatória.

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Caso PC Siqueira envolve crimes além do suposto abuso de menores http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/06/18/caso-pc-siqueira-se-torna-novela-com-reviravoltas-e-varias-questoes-legais/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/06/18/caso-pc-siqueira-se-torna-novela-com-reviravoltas-e-varias-questoes-legais/#respond Thu, 18 Jun 2020 18:04:08 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1413

Crédito: Reprodução/YouTube/maspoxavida

O que acontece quando a moda do cancelamento, impulsionada pela cultura do exposed, atinge um youtuber conhecido tanto por suas opiniões fortes quanto por seus relatos sobre depressão e suicídio, envolve acusações sérias de pornografia infantil, levanta dúvidas sobre se os conteúdos vazados são verdadeiros ou fake e faz instaurar mais uma vez o tribunal da internet?

O caso envolvendo um vídeo e áudios vazados supostamente do youtuber PC Siqueira, nos quais o mesmo comentaria ter recebido fotos de uma menor de seis anos nua – enviadas pela própria mãe da criança – reúne todos os elementos acima e acabou mobilizando as redes sociais.

A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo confirmou que está investigando o caso, o que não impediu milhares de usuários das redes sociais de processar a denúncia, analisar as provas e julgar o caso. A questão não é nada simples e envolve a possível ocorrência de um crime grave: abuso sexual de menores. Enquanto os meios investigativos oficiais não se pronunciam, vale dar um passo atrás e refletir sobre o que aconteceu nos últimos dias e o que aprendemos até aqui.

1. Cancelamentos e “exposed” transformaram as redes sociais no crepúsculo dos ídolos

O caso do PC Siqueira é o encontro de dois rios que correm soltos nas redes: o de águas turvas, que esconde, oculta e bloqueia a pessoa cancelada, e o de águas claras, que mostra para quem quiser ver o que mora lá no fundo. Ou seria ao contrário? Será que as campanhas pelo cancelamento de uma celebridade, que tanto querem relegá-la às sombras, não acabam por jogar mais holofote em cima dela? Será que a cultura do “exposed”, ao trazer à luz tantas histórias graves e relatos corajosos, também não ofusca o debate ao incentivar o repúdio no mesmo volume de casos muito diferentes?

É difícil admitir que as coisas são complexas quando todos desejamos soluções fáceis. De certa maneira, a cultura do cancelamento é mais um produto da barulhenta transformação das redes sociais em tribunais de improviso. Tudo pode acontecer em um par de horas depois que a acusação é apresentada. Reunidos em plenário, centenas ou milhares decidem que a celebridade está banida dos seus respectivos afetos e, para tornar público e oficial, fazem subir a hashtag #fulanoisoverparty. A Justiça pode ser cruel.

A cultura do “exposed”, por outro lado, tem uma história recente mais sóbria. Brotando da mesma árvore que nos deu movimentos importantes como o #metoo, as séries de postagens que expõem casos de abusos vieram em boa hora para lembrar que não é não. Os alvos podem ser mais ou menos anônimos, porém algo diferente acontece quando o relato envolve uma celebridade e vem acompanhado de áudios vazados e “prints”.

Aqui a história vira uma novela, ou uma série cheia clímax de ação ou reviravoltas dramáticas. Primeiro veio o vídeo de um chat que supostamente envolvia o youtuber. Ele era culpado. Depois ele fez uma postagem no Instagram apontando inconsistências no vídeo. Agora ele era inocente. Depois vieram os áudios e tudo se tornou mais complicado.

Com uma parte da população trancada em casa e viciada em séries, não é difícil entender como a pessoa sai do Netflix, entra nas redes sociais e passa a tratar os casos que ali se desenrolam como se fosse mais um episódio da sua série dramática favorita. Só que do outro lado da tela não estão mais os atores que fazem assaltantes de banco espanhóis ou vikings com penteado hipster. Estamos falando de pessoas e de consequências reais.

2. Está cada vez mais fácil criar e acreditar em vídeos e áudios falsos

Mas será que o vídeo mostrando um chat envolvendo o YouTuber e os áudios em que ele confessa o crime são mesmo verdadeiros? Enquanto uma parte dos usuários das redes sociais tomou esses elementos como prova inconteste, outra parte se transformou em detetive virtual e foi atrás da possibilidade de manipulação das evidências.

O que não falta na internet são aplicativos para simular uma troca de mensagens. Existem aplicativos que imitam o ambiente do WhatsApp, do Instagram e do Messenger. Eles geralmente são anunciados como uma forma de pregar uma peça nos seus amigos ou para fazer paródias. Neles você escolhe o nome do destinatário, insere uma foto e, já dentro do ambiente do aplicativo, passa a escrever tanto as suas mensagens como as do suposto destinatário.

Basta depois fazer um print ou gravar um vídeo da tela do seu celular e espalhar por ai que você trocou mensagens com alguém que nem faz ideia de que isso aconteceu. O produto desses apps podem tanto servir para fins humorísticos como para falsear uma comunicação que pode atingir a honra e direitos de terceiros. Já apareceram alguns casos policiais no Brasil em que a montagem de conversas de WhatsApp veio à tona.

Embora a divulgação de vídeos de conversas instintivamente nos leve a acreditar no que estamos vendo, vale manter uma saudável desconfiança sobre a veracidade dessas “provas” nesses tempos em que vídeos e áudios podem ser facilmente manipulados. Isso se torna ainda mais difícil no Brasil, quando todos estamos acostumados a ver vazamentos de conversas alheias enquanto as atividades investigativas sobre as mesmas ainda estão em curso. Autorizadas ou não pelo Judiciário, as sucessivas divulgações de áudios e prints de mensagens nos viciaram nesse peculiar modo de se contar a história de um suposto ilícito.

Sendo assim, se vazou o print é porque está provado. E essa certeza se torna ainda mais convicta quando o prejudicado é alguém que está do lado oposto do espectro político-ideológico. Esse círculo então parece se fechar quando é cada vez mais fácil criar conteúdo manipulado e, do outro lado da linha, estão pessoas que cada vez mais facilmente acreditam neles.

3. Exploração sexual de crianças é crime e pode implicar o youtuber e a mãe da criança

Caso confirmado pelas autoridades, a conduta do youtuber é grave. Algumas pessoas levantaram a questão nas redes de que o episódio poderia ser relevado porque não houve contato físico com o menor. Isso não procede. Se teve ou não contato com a criança, se foi ou não frequente o envio desses conteúdos, se a foto foi ou não compartilhada e com quais finalidades são questões que interessam para calibrar a condenação.

O artigo 241-A, do Estatuto da Criança e do Adolescente, pune com reclusão de três a seis anos e multa quem “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.”

Já o artigo 241-B, pune com reclusão de um a quatro anos e multa quem “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.”

Caso o teor das mensagens seja verdadeiro, não apenas existe um armazenamento da foto, mas também a sua divulgação para terceiros. Essa conduta agrava a situação tanto do youtuber como da mãe da criança.

4. Instigar o suicídio também é crime

Não deixa de ser paradoxal que muitos dos juízes das redes sociais que já condenaram o youtuber pelo crime de pornografia infantil são os mesmos que fizeram postagens incentivando o suicídio do “condenado”. Vale lembrar que induzir ou instigar alguém a suicidar-se também é crime (artigo 122 do Código Penal), com pena de reclusão de seis meses a dois anos.

Essa pena “é aumentada até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real” (§ 4º) ou aumentada “em metade se o agente é líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual” (§ 5º).

Nas redes têm desde enquetes grotescas sobre se o youtuber deveria ou não cometer suicídio a comentários que zombam do seu histórico de depressão. Já falamos aqui no Tecfront sobre como suicídio e redes sociais é um tema pouco compreendido. Enquanto não encontramos uma etiqueta para a tristeza nas redes, elas vão sendo tomadas por manifestações mais guturais como amor, ódio e aparência de felicidade.

O caso do PC Siqueira é também paradoxal porque de um lado ele possui todos os ingredientes que compõem esse caldo cultural que forma as redes sociais em 2020, com cancelamentos, “exposed”, celebridades e questionamentos sobre saúde mental. Todavia, olhando por trás do espelho, o caso não entrega as respostas rápidas que os julgamentos da internet demandam, frustrando os que desejam respostas simples para problemas complexos.

Quando vazaram os áudios e a repercussão do caso pareceu fugir de qualquer controle, o youtuber postou uma imagem com uma letra do cantor-compositor Leonard Cohen na qual se lê: “You want it darker, we kill the flame” (você quer a escuridão/nós apagamos a vela). “You want it darker” é também o nome do último disco do cantor, lançado 19 dias antes da sua morte.

Enquanto se espera por uma visão mais clara dos acontecimentos, podemos sempre recorrer à outra letra do genial Leonard Cohen que passa a mensagem justamente oposta ao dizer que: “everything has a crack, that’s how the light gets in” (tudo tem uma rachadura/é assim que a luz consegue entrar).

Vai ser reconhecendo as rachaduras e identificando o que a luz revela que não apenas essa história, mas também a nossa própria experiência nas redes sociais, podem se tornar mais iluminadas.

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Brasil não precisa importar nova regra de Trump sobre redes sociais http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/05/29/brasil-nao-precisa-importar-nova-regra-de-trump-sobre-redes-sociais/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/05/29/brasil-nao-precisa-importar-nova-regra-de-trump-sobre-redes-sociais/#respond Fri, 29 May 2020 15:47:04 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1402

Crédito: Yuri Gripas/Reuters

O Brasil volta e meia flerta com a importação de experiências legais estrangeiras sem a devida atenção ao que já existe por aqui. O caso da ordem executiva baixada pelo presidente americano Donald Trump sobre a responsabilidade de conteúdo das redes sociais é mais um episódio da série.

No mesmo dia em que a ordem foi publicada nos EUA, começaram a aparecer reações do lado de cá sobre a oportunidade de algo semelhante ser adotado pelo governo brasileiro.


Antes de mais nada, vale lembrar que existe uma diferença grande entre o que levou à assinatura da “executive order” do Trump e o que leva o nosso Congresso atualmente a debater uma lei anti-fake news. Lá o discurso é que plataformas estão controlando demais o conteúdo; aqui a queixa é que estão controlando menos do que deveriam.

Nos EUA a discussão trata do poder das plataformas em marcar e remover conteúdos como sendo falsos ou danosos, o que prejudicaria a liberdade de expressão, especialmente quando o grupo mais conservador se vê como alvo preferencial dessas medidas.

Então as vítimas no debate americano seriam os autores de postagens que teriam seus conteúdos removidos ou marcados. A nova regra poderia fazer com que essas pessoas pudessem processar as plataformas por violação à liberdade de expressão. Esse recurso nos EUA não existe porque a lei garante 1) não apenas que provedores não sejam tratados como “editores” de conteúdo postado por terceiros, 2) como também não sejam condenados caso, de boa-fé, decidam remover algo que entendam como “obsceno, lascivo, excessivamente violento, ameaçador ou censurável”.

No Brasil isso nunca foi um problema. O artigo 19 do Marco Civil da Internet não é a Section 230 do Communications Decency Act americano, que está sob ataque do Presidente Trump. A imunidade que existe aqui para provedores é sobre o conteúdo postado por terceiros (geralmente seus usuários), mas não sobre a sua remoção e atividades das empresas na moderação de conteúdo. De certa forma, temos a primeira parte da legislação americana, mas não a segunda (conhecida por lá como “bloqueio do bom samaritano“).

A imunidade no Brasil é para responsabilidade por atos de terceiros e não por atos próprios dos provedores. O que se quer fazer nos EUA já é uma realidade no Brasil, com usuários processando e ganhando ações quando as plataformas agem e removem abusivamente conteúdos.

O artigo 19 do Marco Civil da Internet diz que provedores não serão responsáveis pelos atos de terceiros (seus usuários) até que uma ordem judicial afirme que o conteúdo é ilícito. A partir desse momento, caso elas não removam o conteúdo elas passam a ser responsáveis por ele.

O alvo da nossa lei é impedir que as plataformas respondam por tudo que é postado de cara, então é uma lei que impede os provedores de virarem juízes definitivos do que é lícito ou ilícito. A imunidade é para “danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros” e só até a ordem judicial.

A imunidade que Trump quer remover nos EUA jamais existiu no Brasil. O provedor aqui pode remover conteúdo antes de uma decisão judicial, de olho nos seus próprios Termos de Uso, mas essa medida pode também ser objeto de contestação judicial. Vários usuários, se sentindo prejudicados por remoção de páginas, vídeos e fotos já processaram provedores por aqui e ganharam as ações. Isso porque a imunidade do artigo 19 do Marco Civil justamente não pega essas situações.

Quando uma plataforma marca, remove ou reduz a visualização de um conteúdo erroneamente, indo além do seus próprios Termos de Uso, o dano é derivado de um “ato próprio” dela. A imunidade do artigo 19 é só para “atos de terceiros”.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por exemplo, já condenou a Google por ter removido erroneamente vídeos de paródias musicais do YouTube alegando ofensa à direito autoral. O autor do canal, que fez paródia das músicas “Malandramente” e “10%”, processou e levou justamente porque a imunidade não pega atos próprios das plataformas.

O Poder Judiciário já obrigou também o Facebook a republicar posts de Eduardo Bolsonaro que a plataforma havia apagado. Da mesma forma, o Poder Judiciário do Distrito Federal já condenou o Facebook por ter erroneamente removido a “fanpage” de um deputado.

Ou seja, não precisamos importar a remoção da imunidade que Trump quer impor nos Estados Unidos porque essa imunidade nunca existiu por aqui. Ações das plataformas diretamente sobre o conteúdo são “atos próprios” e não estão cobertos pela regra do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

A realidade que a ordem executiva americana procura criar nos Estados Unidos já existe nos diversos processos em que o Judiciário brasileiro analisa se o autor de uma postagem ou o dono de um canal realmente teve seu conteúdo removido, filtrado ou marcado de modo equivocado e abusivo. Não precisamos de uma nova lei para criar o que já existe.

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Discussão do STF sobre envio de dados ao IBGE foi de “1984” a fake news http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/05/07/discussao-do-stf-sobre-envio-de-telefones-ao-ibge-foi-de-1984-a-fake-news/ http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2020/05/07/discussao-do-stf-sobre-envio-de-telefones-ao-ibge-foi-de-1984-a-fake-news/#respond Fri, 08 May 2020 00:03:37 +0000 http://tecfront.blogosfera.uol.com.br/?p=1392

Presidente do STF, ministro Dias Toffoli em sessão realizada por videoconferência (Fellipe Sampaio /SCO/STF)

Pelo placar de dez votos a favor e um contra, o Supremo Tribunal Federal, reunido através de videoconferência, confirmou em plenário a decisão liminar concedida pela ministra Rosa Weber que suspende os efeitos da Medida Provisória nº 954/2020. A MP obrigava as empresas de telefonia a compartilhar os dados de seus clientes com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os dados em questão eram nome, endereço e telefone de todos os brasileiros que possuem um número de telefone fixo ou móvel. Segundo o texto da MP, os dados seriam utilizados pelo IBGE para a realização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O seu compartilhamento valeria apenas enquanto durasse a situação de emergência de saúde pública decorrente da covid-19.

Cinco ações judiciais questionaram a medida provisória no STF, alegando que: (i) ela obrigava o compartilhamento de mais dados do que o necessário para a finalidade indicada; (ii) que essa mesma finalidade não estava bem definida; (iii) além de não conter medidas de segurança, e (iv) não seguir padrões de tratamento de dados previstos na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). No Congresso, mais de trezentas emendas foram propostas ao texto da MP.

Mas não é igual à lista telefônica?

Chamou atenção na manifestação da Advocacia Geral da União (AGU) e da Procuradoria Geral da República (PGR) uma tentativa de enquadrar o compartilhamento de dados previsto na MP com o que acontecia com as antigas listas telefônicas, nas quais se podia facilmente encontrar informações pessoais.

Diversos expositores, além dos ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, lembraram que não estamos mais nos tempos das listas telefônicas, e que hoje pode se fazer muito com o acesso indevido a informações como nome, endereço e telefone. A ministra Cármen Lúcia brincou que sentia saudades dos tempos das listas telefônicas, mas que hoje percebe como dados são facilmente manipulados de forma indiscriminada. Chegou a citar que existem quatro perfis falsos da ministra nas redes sociais. Com o logotipo do STF e tudo.

O professor Danilo Doneda, falando pelo PSB, um dos autores das ações contra a MP, lembrou que o número de telefone hoje é mais do que um simples identificador. Ele é o login, a chave de acesso para muitas aplicações populares e que usam o número de telefone como nome de usuário para entrar no app. Não custa lembrar que foi apenas com nome e número de telefone que começou o “hack” dos celulares do ex-ministro Sergio Moro e de integrantes da Operação Lava Jato.

A AGU e a PGR insistiram que a MP tratava apenas de dados simples e argumentaram que se estava pedindo tão somente “nome, endereço e telefone”. A AGU chegou a mencionar que se as antigas listas telefônicas ainda estivessem sendo produzidas essas ações no STF nem mesmo existiriam. Acrescentou que com o acesso dos dados pelo IBGE, bastaria ao cidadão recusar a participação na pesquisa quando fosse contatado pelo telefone. Sendo assim, o incômodo seria reduzido.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, afirmou que a simples existência da covid-19 sem previsão de término, e com sucessivas etapas, já exige medidas excepcionais e que liberdades fundamentais podem ser restringidas em uma perspectiva abrangente. De forma prática, lembrou que camelôs na rua 25 de Março, em São Paulo, vendem mídias contendo o CPF de milhares de cidadãos brasileiros e que a MP contava com medidas de proteção aos dados compartilhados. O representante do IBGE também confirmou as condições de segurança na guarda dos dados pela entidade.

Dentre as falas como amicus curiae vale destacar a participação de Bruno Bioni, pela Associação Data Privacy Brasil, que afirmou ser o julgamento uma oportunidade histórica para o STF consagrar o direito à proteção de dados como um novo direito fundamental.

Rosa Weber cita “1984” e “Privacidade Hackeada”

Em voto para manter a sua decisão liminar, a ministra Rosa Weber pontuou diversos aspectos nos quais a medida provisória não atendeu aos padrões de segurança e de devido processo no tratamento dos dados pessoais. A relatora do caso mencionou como o tema da privacidade e da proteção de dados vem ganhando concretude, partindo de obras literárias como o “1984”, de George Orwell, até o recente documentário “Privacidade Hackeada”, exibido no Netflix.

Essa contextualização é interessante porque mostra como obras literárias e audiovisuais auxiliam na formação de uma entendimento sobre a relevância de um tema que está intimamente conectado com nossas vidas. A privacidade e os dados em jogo não são de personagens fictícios ou de outros abstratamente considerados. É preciso pensar: o que pode ser feito se esses dados forem acessados de forma indevida? A MP e sua regulamentação criam medidas de proteção para prevenir incidentes e para punir os responsáveis por eventuais danos causados?

A ministra questionou a vagueza com a qual a MP trata da finalidade de pesquisa estatística. Afirmou ainda que a pretensão de se fazer uma pesquisa sobre a covid-19 foi anunciada na página do IBGE, mas que isso não surgia do texto da MP.

A ministra leu uma notícia divulgada pelo próprio IBGE na qual a entidade informou que cerca de 2.000 agentes já estavam ligando para aproximadamente 70 mil domicílios (mês). Ou seja, não apenas o compartilhamento obrigado pela medida provisória não parecia então ser tão imprescindível, como o universo de domicílios pesquisados se mostrava infinitamente menor do que o universo de dados que seriam compartilhados pelas empresas de telefonia.

Em texto aqui no Tecfront já lembramos que: “Quem quer ligar para 70 mil domicílios por mês não precisa receber os dados de 200 milhões de pessoas de uma só vez. Na linguagem da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), isso fere os princípios da adequação e da necessidade.”

Rosa Weber afirmou ainda que a MP não trazia as devidas medidas de segurança técnicas e administrativas para o tratamento de dados, colocando em risco a tutela de direitos fundamentais.

Da proteção de dados às fake news

Uma das linhas de argumentação que ajudaram a fragilizar o texto da MP foi o receio de que, sem as travas jurídicas e tecnológicas, os dados compartilhados pelas empresas de telefonia terminariam sendo acessados de forma indevida e usados em campanhas de desinformação e de ataques a adversários políticos. Não faltou na internet menções ao chamado “gabinete do ódio”.

Essa vinculação entre o tratamento de dados pessoais e o disparo em massa de mensagens por aplicativos embarcados em telefones celulares não passou despercebida pelos ministros do STF. O ministro Luiz Fux lembrou que “nós sabemos hoje que a difusão desses dados é perigosíssima”, lembrando da sua experiência como presidente do TSE durante o último pleito eleitoral e do escândalo envolvendo a empresa Cambridge Analytica.

O ministro chegou a mencionar que, através do acesso a dados pessoais, é possível criar perfis das pessoas e com isso mantê-las em uma verdadeira bolha informacional.

Proteção de dados é fundamental para o futuro da tecnologia

Citando o autor Yuval Harari, o ministro Gilmar Mendes destacou como a proteção de dados é uma peça fundamental para descortinar o futuro das nossas vidas na sociedade da informação e frente ao avanço da inteligência artificial.

O ministro lembrou que a tutela dos dados pode evitar “o hackeamento humano”. Em seu voto, também mencionou como o ordenamento jurídico protege os dados pessoais de modo que esse direito não seja apenas uma liberdade individual, mas também uma verdadeira garantia coletiva que impeça o fortalecimento de um poder de vigilância.

A noção de vigilância (no caso estatal) apareceu no voto do ministro Luis Roberto Barroso. O ministro lembrou que na questão sobre o uso de dados pessoais existe “compreensível desconfiança com relação ao Estado de um modo geral, porque o passado condena.” Afirmou ainda que a via da MP impediu o necessário debate prévio sobre o tema.

Ao final do seu voto, o ministro Barroso sugeriu um teste para medir o uso de dados pessoais para fins de pesquisas estatística: 1) A finalidade da pesquisa está bem definida?; 2) O acesso aos dados ocorreu na extensão mínima para cumprir o seu objetivo?; e 3) Existem procedimentos de segurança para evitar vazamentos e utilizações indevidas?

Uma questão de proporcionalidade

A ideia de que a MP falhou em exigir dados em demasia, sem o devido processo e garantias de segurança apareceu nos votos dos ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Ricardo Lewandowski. O ministro Fachin afirmou que “a medida provisória intervém fortemente na esfera nuclear da vida privada. Uma intervenção dessa natureza seria possível. Mas só seria possível com o reforço de garantias procedimentais quanto aos dados”.

O ministro Marco Aurélio foi o único voto vencido por entender não apenas que MPs não devem ser questionadas no STF enquanto corre o prazo para sua avaliação no Congresso, como também por discordar dos colegas sobre a questão de fundo. Segundo o ministro, quem perde com esse isolamento do IBGE, que fica sem acesso aos dados é a própria sociedade.

O presidente do STF, Dias Toffoli, encerrou a sessão agradecendo a “locução inconfundível” do ministro Marco Aurélio, mas votando por confirmar a decisão liminar da ministra Rosa Weber.

Com isso, os efeitos da medida provisória estão suspensos. As mais de 300 emendas apresentadas no Congresso demonstram como o tema movimentou os parlamentares e é de se esperar que existam cenas dos próximos capítulos. Enquanto isso, os votos dos ministros do STF –proferidos entre um probleminha de conexão aqui e um disparo de alarme de celular ali– ajudaram a construir uma perspectiva de fortalecimento da proteção de dados no Brasil.

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