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Carlos Affonso Souza

Precisamos falar sobre suicídio e redes sociais

Carlos Affonso

26/09/2018 04h00

Quanto mais pessoas enxergam o mundo através das redes sociais, mais importante é levar o debate sobre temas difíceis, como a prevenção do suicídio, para dentro delas. (Foto: "Mulher diante do nascer do sol", Caspar David Friedrich)

Os outros são mais felizes. Ou pelo menos parecem ser no desfile de textos, fotos e vídeos que celebram grandes e pequenas vitórias alheias nas redes sociais. A internet ampliou de modo impensável a nossa capacidade de comunicação. Se por um lado isso abriu as portas para um universo de acesso ao conhecimento, também viabilizou a criação de um espetáculo pessoal que é exibido 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Como isso afeta a sua visão de mundo? Como isso transforma a sua forma de comunicação e o seu comportamento em geral? E talvez, ainda mais importante, como isso afeta os outros? Uma vez dadas as condições, o que fizemos com essa brilhante ferramenta de comunicação? Passamos, quase que exclusivamente, a transmitir a nossa rotina, sempre através da lente da vitória, da importância. O que vai para a rede social é o the best of. Todos são assim mais felizes ou mais bem sucedidos online.

Essa constatação tem dois impactos. O primeiro é que ainda não encontramos uma forma de canalizar a tristeza nas redes sociais. Simplesmente não existe etiqueta para o que não seja comemoração ou confusão na internet. Um post sobre uma derrota é às vezes até desconcertante. O que isso faz aqui, na terra da alegria e das tretas?? Só muito recentemente, por exemplo, o Facebook habilitou a reação de tristeza à postagem de usuários. Antes disso, para todo o tipo de publicação só havia o like, a curtida. Mas o que significa curtir?

É só tomar o exemplo do luto. Ainda estamos desenvolvendo a nossa forma de lidar com a morte nas redes sociais. Quando alguém posta uma mensagem sobre um falecimento, qual é a conduta esperada? O emoji da carinha triste é uma reação natural. Certamente ela diz mais do que a simples curtida anterior. O fato de que apenas se dispunha de um botão de curtida até pouco tempo atrás mostra como a rede social não parece ainda estar pronta para nada que não possa ser curtido.

Poucas coisas parecem menos propensas a serem curtidas do que uma mensagem de falecimento. A arquitetura das redes sociais pode engessar o tipo de informação que circula ali. Mas é claro que quanto mais central se tornaram as redes sociais para a nossa comunicação e formação de identidade, mais próxima está o dia em que a barreira da alegria absoluta será rompida. Novas reações ampliaram a demonstração de emoções no Facebook, mas será que elas são suficientes para canalizar o que as pessoas estão sentido? E nas demais redes sociais? Será que todas as emoções humanas podem ser resumidas em carinhas amarelas, estrelinhas, setinhas e corações? Todos símbolos prontos para serem decodificados por alguma aplicação de inteligência artificial.

O segundo efeito do desfile de realizações nas redes sociais é o impacto que isso causa em pessoas que já estão propensas a estados depressivos ou apresentam alguma condição que demandaria tratamento especializado. Ao ser confrontado com a felicidade total (e artificial) alheia, não tem como não achar que nas redes sociais não há espaço para quem não está se sentindo da mesma forma. É um inevitável sentimento de não pertencimento.

Neste ano, no espaço de uma semana, duas celebridades cometeram suicídio. A famosa designer de bolsas Kate Spade e o chef e apresentador Anthony Bourdain. Ambos pareciam ser mais do que realizados profissionalmente. Para a surpresa de muitos, mesmo pessoas próximas não pareciam acreditar nas notícias sobre o que aconteceu.

Ambos pareciam ter encontrado em suas vidas um meio de conectar os seus talentos com o seu trabalho. Foram reconhecidos justamente pelo que gostavam de fazer e faziam bem. Então por que isso não foi suficiente? As mortes de Spade e Bourdain jogam luz sobre o descompasso entre a vida pública e a vida privada. Além disso, dada a notoriedade dos profissionais, volta à cena a questão sobre o impacto das notícias sobre as pessoas.

Depois do suicídio do ator Robin Williams, por exemplo, houve um aumento nos casos de suicídio nos Estados Unidos. Como a imprensa acabou publicando o ocorrido com mais detalhes do que deveria, o mesmo tipo de morte acabou sendo replicado.

Existem várias recomendações, inclusive editadas pela Organização Mundial de Saúde, sobre como cobrir um episódio de suicídio. Elas incluem: (i) dar grande destaque para os canais através dos quais pessoas possam pedir ajuda; (ii) evitar simplificar a situação relacionando o suicídio com uma causa específica, como o fim de um relacionamento; (iii) não entrar em detalhes sobre as circunstâncias da morte; (iv) não fazer julgamentos sobre o fato, especialmente evitando caracterizar o falecido como um mártir e (v) não fazer uma cobertura sensacionalista sobre a dor alheia. De forma geral, o principal recado é: dar mais importância para a história de vida das pessoas do que para a história de sua morte.

Em veículos de imprensa essas recomendações são mais fáceis de serem seguidas. No caso das redes sociais, que dependem de postagens de seus usuários, o controle é mais complexo, senão mesmo impossível. E o que podem então as redes sociais fazer?

Como parte das atividades ligadas ao Setembro Amarelo, mês de conscientização sobre a importância da vida e a prevenção ao suicídio, várias redes sociais criaram suas próprias iniciativas sobre o tema. No Twitter, a pesquisa sobre temas associados a suicídio leva à apresentação de telefones de apoio e mensagens de prevenção ao suicídio. A iniciativa foi criada em parceria com o Centro de Valorização da Vida (CVV).

No Facebook, uma campanha busca informar as pessoas sobre a necessidade de procurar ajuda. A empresa vem, nos últimos anos, investindo em inteligência artificial para identificar padrões que possam ser reconhecidos e servir de gatilho para mensagens de ajuda. Da mesma forma, na ferramenta de denúncia de conteúdo, os amigos podem marcar uma postagem como sendo preocupante nesse contexto e com isso mensagens são enviadas para o autor. Elas transmitem informações que podem ajudar a pessoa que atravessa um momento difícil e indicam números de telefone e outros meios de contato através dos quais a pessoa possa buscar apoio. Existe também uma página dedicada à prevenção de suicídio na Central de Ajuda da plataforma.

Outras páginas dentro da rede social também lançaram conteúdos dedicados ao Setembro Amarelo, buscando incentivar uma maior reflexão sobre o tema e atingir os seus leitores com uma mensagem visual rápida e efetiva. Essas iniciativas, é claro, são apenas o começo de uma conversa mais longa e que precisa ser acompanhada. Todavia, em um ambiente cada vez auto-laudatório e polarizado, o destaque alcançado por postagens sobre prevenção ao suicídio podem indicar uma nova direção.

São iniciativas como essas que visam a transformar as redes sociais em um espaço mais aberto ao debate sobre um tema que é repleto de preconceitos e tabu. Ainda existe muito por fazer, mas o primeiro passo está em cada um de nós parar de se achar alheio à questão do suicídio. Esse não é um problema distante, que só interessa aos outros. É uma discussão da qual não devemos fugir.

Vale lembrar que, em média, trinta e dois episódios de suicídio ocorrem no País por dia. Segundo o Ministério da Saúde, essa já é a quarta maior causa de morte de brasileiros entre 15 e 29 anos. Somos um povo conhecido por ser alegre e amigável. É hora de levar a nossa vocação a sério e ajudar a construir espaços de diálogo dentro e fora da Internet. A gente se importa.

PS: Para apoio emocional e prevenção do suicídio, o Centro de Valorização da Vida (CVV) pode ser acessado pelo site ou através de ligação para o número 188.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.