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Inquérito das fake news vai de "feitiço do tempo" à "lost in translation"

Carlos Affonso

01/08/2020 15h24

Provando uma vez mais que vivemos um grande dia da marmota nessa quarentena, em mais uma sexta-feira o noticiário foi balançado por uma decisão do Ministro Alexandre de Moraes no inquérito das fake news e ataques ao STF. Na sexta passada o Ministro havia determinado o bloqueio de contas nas redes sociais dos investigados. Como o bloqueio apenas foi implementado no Brasil, e os conteúdos continuavam a ser visualizados no exterior, o Ministro agora determinou que os provedores promovam o bloqueio global das mesmas contas. 

STF interpreta e aplica a Constituição brasileira. Quando o Ministro Alexandre de Moraes afirma que as plataformas, ao remover contas só no Brasil (e não no mundo como um todo), cumpriram apenas PARCIALMENTE a sua decisão, ele entende que as leis brasileiras valem também para além das nossas fronteiras. Como assim?

Em primeiro lugar vale lembrar que o Ministro usou capslock para dizer na decisão que ele "DETERMINOU" o cumprimento da medida "INTEGRALMENTE". Ou seja, bloquear as contas apenas para usuários que acessam às plataformas usando conexões advindas do Brasil não seria um modo de atender a decisão conforme desejado pelo Ministro. A sua intenção seria que as contas dos investigados não pudessem ser acessadas nem aqui nem em qualquer outro país. Mas será que um juiz brasileiro pode fazer com que a conta em rede social de um brasileiro seja bloqueada do mundo todo? Ou os efeitos dessa decisão deveriam ficar adstritos ao território nacional?

O debate sobre efeito extra-territorial das leis e ordens judiciais vem crescendo nos últimos anos. Estamos acostumados a falar que a Internet é uma "terra sem fronteiras". Isso é um mito. A mesma rede que permite comunicação global dá meios para se preservar as fronteiras nela. E isso não é nada novo. 

Em 2000 o Tribunal de Grande Instância de Paris decidiu o caso LICRA x Yahoo!, no qual se discutia se memorabilia nazista vendida em site de leilão do réu poderia ser bloqueada especificamente para usuários acessando a Internet da França (país em que a venda de itens nazistas é proibida). A empresa alegou que isso era impossível, embora o laudo técnico nos autos já comprovasse que era sim viável identificar o país de onde vinha a conexão ao site e, assim, bloquear aqueles acessos provenientes da França.

Então a Internet é uma rede global, mas na qual as fronteiras dos países estão longe de serem irrelevantes. No Brasil existem diversos casos em que juízes acabam decidindo de modo a obrigar a remoção global de um conteúdo ou, ao contrário, determinando que ele seja apenas apagado para usuários acessando a rede no Brasil. O Tribunal de Justiça de São Paulo  já mandou o YouTube remover video globalmente, mas também já afirmou que "este juízo não detém jurisdição para determinar que o vídeo indicado na inicial não seja divulgado em território estrangeiro, tal como Colômbia e Alemanha sob pena de transportar o âmbito de sua competência e incidir em violação da soberania dos demais países." (TJSP, Agravo de Instrumento nº 2.059.415-21.2016.8.26.0000). 

De modo semelhante, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu recentemente que o Google não deveria aplicar o chamado "direito ao esquecimento" pedido por um europeu em buscas realizadas fora da Europa.

Os efeitos extra-territoriais não surgem apenas em decisões judiciais, mas também em leis. O GDPR (regulamento de dados pessoais europeu) tem um caráter claramente expansionista. O PL2630, que corre na Câmara, daria para autoridades brasileiras acesso a servidores localizados no exterior. Vivemos uma época complexa em que todos querem uma rede global para poder abraçar o mundo, mas ao mesmo tempo garantindo que a sua soberania nacional seja nela respeitada. O que acontece quando o exercício da soberania de um Estado atinge a de outro?

Na Tailândia existem leis que proíbem críticas a integrantes da família real. A Rússia vive às voltas com uma lei que restringe "propaganda de relações sexuais não tradicionais" e que acaba sendo usada para censurar conteúdo ligados à comunidade LGBT. Imagine se um juiz na Tailândia pudesse exportar os efeitos de sua decisão com base nessa lei para todo o mundo? Ou um juiz russo? Acabaríamos nivelando a liberdade de expressão global pelo seu nível mais baixo.

Essa é a preocupação com a nova decisão proferida no inquérito das fake news: ela exporta os efeitos das nossas leis para outros países. Alguns podem dizer que ela está só impedindo um discurso danoso de brasileiros de "sair do País", e que ela não impede pessoas de outros países de fazer o que bem quiserem. Ainda assim o resultado é preocupante e mostra como o conflito entre uma rede global e as fronteiras nacionais é um tema inescapável para refletir sobre o futuro da Internet.

Recentemente publicamos um estudo mostrando o estado atual desses conflitos na América Latina e no Caribe. A pesquisa foi apoiada pela CEPAL/ONU e pela Internet & Jurisdiction Policy Network. Um dos resultados mostra como as cortes supremas da região ainda não adotaram em larga escala decisões com efeitos extra-territoriais, mas os exemplos vindo de fora começam a gerar precedentes contraditórios nas cortes inferiores.

No filme "Feitiço do Tempo" (1993), Bill Murray é um metereologista que foi escalado para cobrir o evento do "dia da marmota" (groundhog day) em uma cidadezinha e acaba preso em uma armadilha temporal que o faz reviver o mesmo dia ininterruptamente. Lembra assim as últimas duas sextas-feiras, marcadas por decisões do Ministro Alexandre de Moraes no inquérito das fake news que mexeram com o noticiário.

Como aparentemente o Ministro queria que as contas dos investigados fossem removidas do mundo todo e os provedores entenderam que era para remover apenas no Brasil, outro filme da cinematografia de Bill Murray também pode ajudar a explicar a confusão: "Lost in Translation", que no Brasil ficou traduzido como "Encontros e Desencontros" (2004). Vamos torcer para que os problemas de entendimento não levem a medidas mais duras, como bloqueio de aplicações que infelizmente marcam a história da Internet no Brasil. Vamos torcer também para que o feitiço do tempo seja quebrado, caso contrário você já sabe que vai encontrar um texto aqui no blog na próxima sexta-feira.

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Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.