O que difere a ação de perfis bolsonaristas no Facebook e de fãs do K-pop?
Carlos Affonso
10/07/2020 10h00
Freepik
O mundo é cheio de comparações e a gente lida com elas a todo instante. Gosto mais disso ou daquilo? Vou fazer uma coisa ou seria melhor fazer outra? Quase sem querer, começamos a organizar a nossa forma de ver o mundo. Comparações também são ferramentas poderosas para explicar conceitos complexos. Colocando duas ou mais situações do lado da outra fica mais fácil entender onde estão as semelhanças e onde residem as diferenças. E quanto mais inusitada for a comparação, mais fácil fica lembrar do conceito.
Esse é o caso da remoção das contas e páginas bolsonaristas recentemente anunciada pelo Facebook e sua comparação com o movimento coordenado de K-poppers a favor de uma causa. O Facebook revelou que as contas foram removidas por terem sido identificadas como pertencentes a uma rede de comportamentos inautênticos coordenados (em inglês, coordinated inauthentic behavior – CIB). Guarde esse termo.
Você pode então se perguntar: por que o Facebook derrubou as páginas favoráveis ao Bolsonaro e não derrubou as contas envolvidas em outros movimentos coordenados? Um bom exemplo seria a atuação de K-poppers que se coordenaram para reservar tickets para um comício de Donald Trump, sem ter qualquer intenção de lá comparecer, deixando o evento relativamente esvaziado. Seria dois pesos e duas medidas? A resposta não está na "coordenação", mas sim no "inautêntico".
Os fãs de K-pop (e também usuários de TikTok) que se coordenaram para esvaziar o comício de Donald Trump não ocultaram a sua identidade nessa ação. Ao contrário, eles acabaram dando os seus números de celular para a campanha republicana ao reservar um assento no comício e depois comemoraram nas redes de forma bastante pública.
O diretor de políticas de segurança do Facebook já afirmou que uma peça central para identificar comportamento inautêntico coordenado na plataforma é o uso de contas falsas, duplicadas, que servem para aumentar a audiência umas das outras, enganando o público. Foi exatamente o que motivou a remoção de contas ligadas a políticos no Brasil (e em outros países).
Um segundo ponto chama atenção também nessa remoção realizada pelo Facebook. Muitas pessoas estão achando que a empresa removeu as páginas e contas por causa dos seus conteúdos, mas a raiz da análise não está no conteúdo e sim no ato de criar contas falsas que se retroalimentam. Essa diferença entre comportamento e conteúdo é essencial também no debate do PL2630, chamado de PL das fake news.
O ministro Luis Roberto Barroso, que preside atualmente o TSE, vem repetindo que o foco do combate às fake news é a identificação de comportamentos e não de conteúdos. Sabe por que isso é importante? Porque filtros automatizados são bons em pegar comportamentos, mas erram muito ao mirar em conteúdo.
As máquinas sabem reconhecer padrões e atuar em cima deles, mas falham muito ao procurar entender o contexto em que um conteúdo se insere e avaliar a sua ilicitude. Em um mundo no qual a moderação nas redes sociais vai ser cada vez mais automatizado, é uma boa ideia que esse controle seja feito mais no reconhecimento de padrões de comportamento do que no conteúdo em si. Isso reduz o risco de estarmos automatizando a censura.
Se você não gosta de filtragem baseada em comportamento pode desabilitar o filtro do seu Gmail que identifica e limpa tudo que é spam da sua caixa de entrada. O risco de se esbarrar na liberdade de expressão quando se foca em comportamento – e não em conteúdo – é muito menor.
Então ficam duas lições das remoções anunciadas pelo Facebook :
- o que é (e o que não é) comportamento inautêntico coordenado (obrigado K-pop por ajudar na explicação!);
- bloqueio baseado em comportamento é mais efetivo (e menos perigoso para a liberdade de expressão) do que aquele que leva em consideração o conteúdo em si.
Assim fica mais clara a utilidade da comparação entre a coordenação dos K-poppers e aquela feita através de contas falsas, duplicadas, que servem para artificialmente aumentar a audiência de um assunto nas redes. O núcleo do conceito de comportamento inautêntico coordenado – que é proibido em muitas redes sociais – não está na coordenação, mas sim na autenticidade.
Comparações fazem o mundo rodar, estão em toda parte e explicam conceitos complexos. É como diz a última música das BLACKPINK, sucesso do K-pop: "Olhe pra mim/Agora olhe pra você/Olhe pra mim/Agora olhe pra você." As interpretações da música divergem, mas certamente ali também existe um conceito a procura de explicação.
Sobre o autor
Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.
Sobre o blog
A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.