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MP de Bolsonaro bagunça a entrada em vigor da Lei de Proteção de Dados

Carlos Affonso

30/04/2020 14h35

Pete Linforth/ Pixabay

Na música "As Árvores", Arnaldo Antunes e Jorge Ben Jor cantam que "as árvores são fáceis de achar/ficam plantadas no chão". Ou seja, seguindo as leis da natureza, uma árvore nasce, cresce e morre no mesmo lugar. Por isso mesmo são fáceis de achar.

As datas de entrada em vigor das leis feitas pelo homem também deveriam ser fáceis de achar. Na verdade, geralmente são. Elas ficam plantadas no final do texto legal, lá no último artigo. Grande parte das vezes, sem alarmes ou surpresas, dizem algo como "esta lei entra em vigor na data de sua publicação."

Acontece que algumas leis exigem mais preparação para a sua entrada em vigor. São aquelas que geram grandes mudanças, que demandam que setores inteiros da sociedade revisem as suas práticas e comecem a se adequar para estarem prontos quando a lei começar a produzir efeitos. Chamamos esse período entre a publicação da lei e a sua entrada em vigor de vacatio legis.

Muita coisa pode acontecer durante a vacatio legis, especialmente se os setores que deveriam se preparar para a entrada em vigor, por qualquer motivo, não conseguem se aprontar a tempo. A receita para confusão começa quando a vacatio em questão não atinge apenas um setor – sempre mais fácil de coordenar – mas sim todos os setores da economia ao mesmo tempo. É natural que algumas empresas e associações setoriais deem a largada e comecem a se estruturar, enquanto outras fiquem para trás. Quanto mais se aproxima a data de entrada em vigor da lei, maior a pressão sobre os retardatários.

Acrescente na receita a demora por parte do próprio poder público em criar as estruturas de fiscalização do cumprimento da lei. Os retardatários agora têm a desculpa perfeita: se o próprio Estado não se organizou, por que eles haveriam de se mobilizar? Ao final, misture bem e insira o contexto de uma emergência de saúde global.

Esse é exatamente o contexto conturbado da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709, a chamada "LGPD"). A lei foi aprovada em 2018 e estava prevista para entrar em vigor agora no dia 14 de agosto de 2020. Esse prazo em si já havia sido motivo de discussão, mas a gente vai poupar você dos detalhes.

Com o atraso na adequação por parte dos setores público e privado, começaram as pressões para a prorrogação do prazo. No Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 1.179/20, do senador Antonio Anastasia (PSD), acabou gerando um acordo que previa a data de entrada em vigor da lei no dia 1º de janeiro de 2021 e das suas sanções em agosto de 2021. Uma vez aprovado no Senado, o texto seguiu para discussão na Câmara.

Na última quarta-feira (29), passando por cima do debate na Câmara e ignorando o acordo alcançado no Senado, o presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória nº 959/2020, que estabelece a operacionalização do pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda e do benefício emergencial mensal. De carona, a MP também mudou mais uma vez a data de entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados. Dessa vez, a data escolhida foi 3 de maio de 2021.

A mudança gerou perplexidade porque ela chega em um momento em que a proteção de dados ganha cada vez mais destaque nas pautas de interesse nacional. Nas últimas semanas, a Medida Provisória nº 954/2020 exigiu que empresas de telefonia compartilhassem os dados de seus clientes com o IBGE. Os efeitos dessa MP foram suspensos por decisão da ministra Rosa Weber, do STF.

Ao mesmo tempo, a implementação de programas de monitoramento de celulares e a criação de índices de isolamento social também esquentou o debate sobre privacidade e proteção de dados no país, com ações judiciais aparecendo nos estados e no STJ.

A entrada em vigor da LGPD em tempos de pandemia traria mais segurança jurídica, já que ela dispõe sobre as formas pelas quais empresas e governos podem coletar, armazenar e usar dados pessoais. Além do consentimento da pessoa para o tratamento de seus dados, a lei traz como bases legais o tratamento de dados para finalidade de proteção da vida e para questões de saúde, explicitando as suas respectivas limitações e sanções em caso de descumprimento.

Quais são os próximos passos?

O rito normal de uma medida provisória, segundo o artigo 62 da Constituição Federal, prevê que o Congresso tem 60 (sessenta) dias para analisar o texto de uma MP, prorrogáveis por outros 60 dias. A partir do 45º dia sem uma definição sobre a MP, a pauta da casa legislativa em que ela estiver sendo apreciada fica trancada.

Então o Congresso, pela regra, teria até 120 dias para analisar o texto da MP. Imagine um cenário hipotético em que o Congresso usasse os 120 dias para analisar a MP e finalmente não a aprovasse (seja de forma expressa ou simplesmente deixando decorrer o prazo). Isso levaria a uma situação no mínimo inusitada: a MP caducaria e voltaria a valer o prazo original de agosto, que então já teria passado!

O Supremo Federal Tribunal já decidiu que "medida provisória não revoga lei anterior, mas apenas suspende seus efeitos no ordenamento jurídico, em face do seu caráter transitório e precário. Assim, aprovada a medida provisória pela Câmara e pelo Senado, surge nova lei, a qual terá o efeito de revogar lei antecedente. Todavia, caso a medida provisória seja rejeitada (expressa ou tacitamente), a lei primeira vigente no ordenamento, e que estava suspensa, volta a ter eficácia." [ADI 5.709, ADI 5.716, ADI 5.717 e ADI 5.727, rel. min. Rosa Weber, julgado em 27/3/2019]

Para tornar tudo ainda mais confuso, vale lembrar que, por conta da pandemia, existe um ato conjunto das Mesas da Câmara e do Senado que criou um rito mais célere para a análise de medidas provisórias. Esse rito especial só vale enquanto durar o estado de emergência de saúde pública gerado pelo combate à covid-19. Esses são os novos prazos:

Acontece que de 31 de março para cá, quando o Ato Conjunto nº 01/2020 foi expedido, algumas MPs têm seguido os prazos novos e outras não. Até porque o prazo de 60 dias, prorrogável por mais 60, está previsto na Constituição Federal e ato conjunto das Mesas do Congresso não pode passar por cima de prazos constitucionais.

Esses prazos novos, e mais curtos, determinados pelas Mesas das Casas Legislativas são os chamados prazos impróprios. Eles servem como um parâmetro para guiar a atuação da autoridade. No caso, servem para estimular a celeridade do Congresso na avaliação das MPs. Mas o seu descumprimento não gera efeitos preclusivos, ou seja, ele não faz a MP caducar se o Senado não votar em 14 (quatorze) dias, por exemplo. Tanto é assim que o próprio Ato Conjunto prevê no seu art. 8º que o Presidente da Casa em que a MP estiver tramitando pode prorrogar formalmente o seu prazo. Tudo dentro do quadrante constitucional de 120 dias, claro.

Então agora o Congresso tem pela frente algumas opções: ele pode (1) aprovar o texto da MP nº 959, fazendo assim que a LGPD entre em vigor no dia 3 de maio de 2021; (2) recusar expressamente o texto da MP, com a Câmara aceitando o prazo já acordado no Senado, o que faria com que a lei entrasse em vigor em 1º de janeiro de 2021; ou ainda (3) não chegar a um consenso e com isso fazer a MP caducar após 120 dias, o que restituiria o prazo original, de 14 de agosto de 2020, que nesse momento já teria passado.

As árvores são fáceis de achar, mas qual das três sementes o Congresso vai querer plantar?

Continuaremos a acompanhar os debates no Congresso Nacional e voltamos aqui no Tilt com qualquer novidade sobre qual será, fatalmente, o prazo de entrada em vigor dessa lei tão importante para o exercício de direitos individuais, para negócios dos mais diversos e para a implementação de políticas públicas.

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Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.