Igrejas podem fazer reconhecimento facial de fiéis?
Carlos Affonso
18/11/2019 17h26
Pawel Englender/ Pixabay
Na história do Cristianismo poucas relíquias são tão conhecidas ou controvertidas quanto os sudários. Existe o véu de Verônica, lenço com o qual foi enxugado o suor de Jesus a caminho da crucificação, além do próprio Santo Sudário, que teria depois coberto o seu corpo. Em todos eles teria ficado marcada para a posteridade a impressão exata do rosto de Jesus. As relíquias hoje atraem peregrinos e ainda geram enorme controvérsia.
Se o milagre da perenização do rosto de Jesus inspirou fiéis através dos séculos, coube à tecnologia de reconhecimento facial, cada vez mais em voga nesse final de década, inspirar uma nova controvérsia: poderiam as igrejas, através de câmeras especiais, monitorar e tratar os dados dos fiéis a partir da identificação de suas faces durante o culto?
Diversas reportagens começaram a aparecer sobre as empresas que estão oferecendo esse tipo de serviço para igrejas. Em geral, as atividades desenvolvidas requerem o cadastro prévio dos fiéis para permitir o reconhecimento de seus rostos pelas câmeras. Uma vez realizada a identificação, é possível saber a frequência com a qual a pessoa está comparecendo aos cultos e também oferecer um tratamento mais customizado. O atendimento paroquial poderia se tornar mais eficiente.
Da mesma forma, como as câmeras permitem o reconhecimento de emoções (como alegria, tristeza ou raiva), é possível também acompanhar como o culto parece afetar cada pessoa e assim direcionar atenção de forma mais personalizada.
Nada disso é ficção científica e os serviços de monitoramento e reconhecimento facial em igrejas parecem ter chegado no Brasil para ficar. A pergunta que se faz é se as igrejas precisam do consentimento dos fiéis para fazer essa identificação dos seus rostos.
Segundo a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018, a "LGPD") os dados biométricos (como aqueles gerados pelo reconhecimento facial) são de natureza sensível e, sendo assim, demandam uma maior proteção. Em especial, o artigo 11 da Lei determina, dentre os requisitos que permitem o seu tratamento por terceiros, a necessidade de que o consentimento seja "de forma específica e destacada, para finalidades específicas."
Montagem com o quadro "Cristo abençoador", de Ingres
Sendo assim, não se pode presumir que o fiel consentiu com o monitoramento no ambiente da igreja para reconhecimento facial. É preciso que as igrejas busquem um consentimento expresso dos fiéis e que se faça constar nessa autorização para quais finalidades a igreja está coletando esses dados.
Não pode, por exemplo, a igreja coletar os dados de seus fiéis informando que utilizará os mesmos para prestar um atendimento paroquial personalizado e depois trocar esses dados com terceiros. Além do reconhecimento facial em si, o dado pessoal relativo à convicção religiosa é um dos mais sensíveis e pode expor o seu titular caso seja utilizado de forma irregular.
Já imaginou o que poderia ser feito caso esses dados vazassem ou de qualquer modo fossem acessados por terceiros não autorizados? Além do caráter íntimo que pode conter a informação sobre a assiduidade em cultos religiosos, os dados relacionados à análise de sentimento durante o culto pode revelar muito sobre o estado em que uma pessoa se encontra. Se ela revela angústia, medo ou tristeza profunda provavelmente está fragilizada e essa é uma oportunidade de ouro para todo tipo de golpe ou tentativas de se aproveitar do estado da vítima.
Por isso o mero anúncio feito pelo responsável pelo culto, informando que existe monitoramento com reconhecimento facial na igreja não se presta como requisito que legitima esse tratamento de dados pessoais. Para os fins da LGPD, esse tratamento é irregular e pode implicar em sanções para as igrejas e para as empresas que operam essas soluções.
A Lei ainda prevê outras hipóteses em que dados sensíveis podem ser tratados sem o consentimento do seu titular, como para cumprir obrigação legal, proteção da vida ou prevenção de fraudes. Nenhuma delas parece legitimar o reconhecimento facial realizado em igrejas para os fins de personalização da atividade religiosa. Dessa forma, não apenas as igrejas precisam buscar o consentimento dos seus fiéis como também explicar para quais finalidades os dados pessoais serão coletados e tratados.
Pode-se ainda questionar se o consentimento dado pelo fiel é mesmo um consentimento livre, já que a não autorização do reconhecimento facial dentro da comunidade religiosa pode gerar algum constrangimento. De qualquer forma, vale lembrar que mesmo com a autorização assinada pelo fiel, o consentimento pode ser revogado a qualquer momento. O titular dos dados pessoais pode ainda exigir o apagamento dos seus dados.
Com o avanço das tecnologias de reconhecimento facial não vai demorar para que casos de tratamento de dados por igrejas ganhem cada vez mais atenção, especialmente dado o enorme volume de dados que podem ser coletados de fiéis. Parece mesmo que a fé move montanhas, mesmo que elas sejam de dados pessoais.
Sobre o autor
Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.
Sobre o blog
A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.