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Procon ignora Marco Civil da Internet para multar gigantes da tecnologia

Carlos Affonso

30/08/2019 18h13

Dizem que com a idade fica cada vez mais caro manter-se jovem. No caso de Google e Apple aconteceu justamente o contrário: jovens querendo parecer velhos é que acabaram trazendo prejuízo para ambas as empresas.

A Fundação Procon-SP multou as empresas em respectivamente R$ 9.964.615,77 e R$ 7.744.320,00 pela disponibilização, em suas lojas, do aplicativo FaceApp. O aplicativo fez sucesso alguns meses atrás e nós alertamos aqui no Tecfront que os seus Termos de Uso e Política de Privacidade eram um tanto estranhos.

Mas será que as empresas que disponibilizam aplicativos em suas lojas devem ser multadas e são responsáveis pelo conteúdo dos Termos de Uso e das Políticas de Privacidade dos apps que podem ali ser baixados? Afinal de contas, não foram elas que redigiram essas cláusulas. Como isso aconteceu e quais são os efeitos que podemos esperar dessa decisão do Procon-SP? Preparamos algumas perguntas e respostas sobre o caso.

O que baseou a decisão do Procon-SP?

O Procon entendeu que Google e Apple, ao disponibilizar o app em suas lojas se tornou responsável pelo seu conteúdo, incluindo danos que possam resultar dos seus Termos de Uso e Política de Privacidade.

Para começo de conversa, o Procon entendeu que os aplicativos deveriam ser disponibilizados com esses documentos em Português para que os consumidores pudessem entender o que estão contratando. O Artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor determina que "a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa" sobre suas características, qualidades, preço, garantia, entre outros dados, bem como "sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores."

Além disso, o Procon entendeu serem cláusulas abusivas as disposições dos Termos de Uso e da Política de Privacidade que reduzem os direitos e garantias dos consumidores como a obrigação de resolver litígios com a empresa através de uma arbitragem na Califórnia e a transferência de dados pessoais para países que podem ter leis que não garantam os mesmos direitos que o consumidor tem no Brasil.

Então o responsável não foi a empresa que desenvolveu o FaceApp e sim Google e Apple?

Isso. O Procon-SP entendeu que, ao disponibilizar o app em suas lojas Google e Apple ingressam na cadeia de consumo do aplicativo e assim podem ser responsabilizadas por ele. Vale notar que não estamos falando de uma falha técnica do app, que poderia ser conferida automaticamente, mas sim de uma interpretação sobre cláusulas em Termos de Uso e Políticas de Privacidade.

Será que as empresas agora precisarão revisar a documentação jurídica de todos os apps que disponibilizam? E ainda que isso seja feito, como agir quando existe dúvida sobre a legalidade ou não de uma cláusula? O Direito está longe de ser uma ciência exata.

Essa decisão não contradiz o Marco Civil da Internet?

Aqui é importante entender que a responsabilidade de empresas pode ser tanto administrativa como civil. O Procon-SP decidiu seguir pela linha da responsabilidade administrativa, prevista no CDC. No que diz respeito à responsabilidade civil, o próprio CDC traz disposições, mas esse tema é também tratado no Marco Civil da Internet (Lei nº 12965/2014).

O Marco Civil da Internet determina que, para os casos de responsabilidade civil, as empresas apenas poderiam ser responsabilizadas por conteúdo de terceiros caso elas viessem a descumprir uma ordem judicial que determinasse a retirada do material lesivo.

Ou seja, pelo Marco Civil, a via que poderia ser adotada pelo Procon-SP ou por entidade de defesa do consumidor seria notificar as empresas sobre a ilicitude das cláusulas do aplicativo. Caso as empresas optassem por não remover (talvez por discordar da avaliação), bastaria uma medida liminar, expedida mesmo pelo Juizado Especial, para que elas tivessem que retirar o aplicativo de suas lojas e se tornassem responsabilizadas em caso de descumprimento.

O Marco Civil não impede as empresas de monitorar a sua plataforma e remover qualquer conteúdo que elas entendam ser ilegal. Elas não precisam esperar por uma ordem judicial, mas em casos duvidosos é importante que o juiz analise o conteúdo e dê garantias de que ninguém está queimando a largada e removendo conteúdo potencialmente lícito.

A lógica do Marco Civil é justamente evitar que empresas que disponibilizam conteúdos de terceiros se transformem em juízes decidindo que o é legal ou ilegal. Ou pelo menos reduzir esse efeito.

Mas o Procon-SP não seguiu o caminho judicial e optou pela via administrativa, multando as empresas pela disponibilização do app como se elas mesmas tivessem escrito os Termos de Uso e as Políticas de Privacidade.

Qual o impacto dessa decisão?

A decisão do Procon-SP em não seguir a via da responsabilidade civil e multar as empresas por uma responsabilidade administrativa gera efeitos importantes para a inovação na Internet e a forma pela qual empresas, grandes e pequenas, disponibilizam conteúdos de terceiros.

Será que esse caso só gerou uma multa tão expressiva porque o FaceApp fez muito sucesso? Francamente não deve ser difícil encontrar outros aplicativos que tenham Termos de Uso e Políticas de Privacidade similares sendo disponibilizados nas lojas online. Será que o Procon-SP começará a emitir multas em série?

Um efeito natural seria as lojas de aplicativos começarem a ser mais conservadoras na análise dos apps que elas disponibilizam no Brasil. O ponto controvertido é que estamos tratando de uma interpretação jurídica e não de uma característica dos apps que possa ser facilmente identificável de forma até automatizada.

Essa conclusão vale para qualquer tipo de aplicações, inclusive jogos, que poderiam então ser apenas disponibilizados no Brasil se tiverem seus Termos de Uso e Política de Privacidade autorizados pelas lojas (e traduzidos para o Português). Não bastaria assim a descrição do app e de suas condições gerais, como acontece com vários aplicativos populares.

O risco de impacto sobre a inovação não é pequeno, especialmente porque os valores das multas são significativos. As empresas podem recorrer e é possível que elas consigam reverter o resultado. Até lá, está na hora de passar um pente-fino nesses aplicativos que estão deixando muita gente com os cabelos brancos.

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Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.