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Novo game do Harry Potter fará privacidade sumir num passe de mágica

Carlos Affonso

15/05/2019 04h00

Você se lembra da comoção que foi o lançamento de Pokémon Go? Aparições de monstrinhos raros em parques públicos faziam com que hordas de jogadores corressem para o local. Teve prefeitura ameaçando levar o jogo aos tribunais por incentivar a invasão de espaços privados. E teve também tribunal que virou ginásio Pokémon e passou a indicar onde, em suas dependências, os jogadores poderiam se reabastecer de itens de primeira necessidade como pokebolas e poções.

Após quase três anos de lançamento, Pokémon Go não morreu. Ao contrário, em muitos aspectos o game nunca foi tão interessante, com novas opções de evolução dos monstrinhos, troca de criaturas e batalhas entre os jogadores. Olhando em retrospecto, fica até uma impressão de que o jogo foi lançado prematuramente.

O seu maior apelo em 2016 era mesmo colocar os personagens da franquia dentro do "mundo real". Não havia nenhuma narrativa ou mesmo missões a serem cumpridas. Passada a surpresa, havia pouco mais para se fazer além de suprir um impulso de colecionador: era preciso completar a pokedex. O jogo nada mais era do que um álbum de figurinhas que te forçava a sair de casa para chocar ovos.

Ainda assim, o lançamento de Pokémon Go criou uma histeria global. Muita gente começou a especular o que a Niantic, empresa responsável pelo game, faria com as imagens captadas pelas câmeras dos jogadores e como isso afetaria a privacidade. Até porque, ao ligar o modo de realidade aumentada, o jogador acaba visualizando o monstrinho dentro de casa, na escola, no trabalho, ou seja, onde ele estiver.

Privacidade não é brincadeira. Pokémon Go foi lançado em um mundo no qual a Europa não tinha ainda virado a chave no debate sobre proteção de dados. Hoje, com o General Data Protection Regulation (GDPR) em vigor, fica muito mais restrita a utilização de dados pessoais de jogadores, incluindo as imagens e vídeos captadas por suas câmeras. Por exemplo, não basta simplesmente avisar que esses dados poderão ser "compartilhados com parceiros comerciais" ou "usados para aperfeiçoar os nossos sistemas". O mundo mudou e a percepção de que os dados pessoais importam cada vez mais também.

Será que, depois de quase três anos, estamos mais preparados para enfrentar uma nova histeria global sobre um game de realidade aumentada? Prometido para 2019, o jogo Harry Potter: Wizards Unite vai trazer o mundo do bruxo, que fez sucesso nos livros e no cinema, para a palma da mão. Saem de cena as varinhas mágicas, entram em cena os smartphones.

A lógica de Wizards Unite é a mesma de Pokémon Go: o jogador enfrenta adversários e encontra itens ao caminhar pela cidade. Aqui e ali, diferentes feitiços precisam ser aprendidos e movimentos desenhados na tela do celular garantem a sua execução. Pode se preparar para esbarrar com muita gente na rua com a cara grudada no celular e fazendo movimentos engraçados com os dedos na tela do aparelho. Assim como nas raids de Pokémon Go, parece que o jogo do universo de Harry Potter contará com "fortalezas" que vão demandar a cooperação entre jogadores para serem dominadas.

A empresa responsável pelo Wizards Unite é a mesma de Pokémon Go. Sendo assim, toda a experiência com o game anterior deve ter ensinado algumas lições. Um dos aspectos curiosos de Pokémon Go é como a experiência do jogo varia entre jogadores que moram nas cidades e aqueles que vivem no campo ou em áreas de pouco adensamento urbano. Para esses últimos, existe uma verdadeira escassez de pokestops (os locais em que se obtém itens e as bolas necessárias para capturar os monstrinhos). Comunidades na Internet procuram auxiliar os jogadores rurais com a doação de itens. Será que o game do universo de Harry Potter continuará a favorecer os jogadores urbanos?

Meu espaço, minhas regras?

A polêmica sobre propriedade privada, por sua vez, deve continuar firme e forte. Quem deu direito à Niantic de colocar os pokémon onde bem entender? Em Ecaterimburgo, na Rússia, um jogador foi preso e condenado ao fazer um filme capturando vários monstrinhos na catedral ortodoxa da cidade. Ele teria ainda se lamentado por "não ser capaz de capturar o Pokémon mais raro de todos: Jesus".

A discussão vai longe. Nos Estados Unidos, em 1945, a Suprema Corte decidiu um caso em que os fazendeiros Thomas Lee e Tinie Causby alegavam prejuízos com o fato de que aviões estavam passando em cima do seu terreno e assustando as galinhas. Alegavam que a sua propriedade se estendia do solo até o espaço aéreo e que com isso deveria ser proibida a passagem de aviões.

Ao votar o caso, um ministro da Suprema Corte afirmou que "o senso comum se revolta contra essa ideia" e assim o tribunal acabou traçando limites à propriedade privada em um "novo mundo moderno" – para usar a linguagem da decisão. Seriam os Pokémon e os dementadores os novos aviões? Com a expansão de jogos e aplicações de realidade aumentada, a inserção digital de elementos em todos os espaços deverá ser considerada normal? Ou isso representa mesmo uma violação à propriedade privada?

Não faltam de casos de jogadores invadindo espaços privados ou de acesso restrito para capturar Pokémon raros. Não deverá ser diferente com Wizards Unite. Aqui do lado de casa, no Palácio da Cidade do Rio de Janeiro, local de trabalho do Prefeito, sempre aparece um Lapras ou outro Pokémon mais raro. Eu, respeitador do espaço alheio, continuo sem nenhum, enquanto o Crivella já deve ter uma coleção. Isso sim que é "uma esculhambação completa"!

Vale ainda lembrar que o frenesi gerado pelo jogo, que pode fazer com que as pessoas se coloquem em situações de risco, também já foi usado como razão para proibir o game em alguns países. Será que o debate sobre bloqueio de aplicativos voltará com força quando do lançamento de Wizards Unite?

Podemos esperar que, depois de três anos, vem ai uma nova onda de controvérsias geradas por um game de realidade aumentada. O que será que aprendemos de lá para cá? Quais novas discussões o jogo Wizards Unite pode trazer? Até a futura data de lançamento – que também é um mistério – só nos resta esperar. Ou pegar sua varinha mágica e gritar "Revelio"!

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Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.