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Por que Facebook e Microsoft estão pedindo por mais regulação da Internet?

Carlos Affonso

06/04/2019 06h00

Pode não parecer, mas a fábula da lebre e da tartaruga explica os dilemas dos Estados e das plataformas na regulação da Internet. (Foto: Disney/1935)

Já era tarde da noite quando cheguei para fazer check-in no hotel. Do meu lado, no mesmo balcão, estava o ex-senador Romero Jucá. Mera coincidência. Antes de liberar a chave do quarto, o recepcionista perguntou qual seria seu email de contato. Ele respondeu e eu, meio que sem querer, ouvi e guardei.

Não sabia se aquele era o email para o qual o ex-senador direcionava as mensagens comerciais que recebia. Fiquei tentado a testar, já que naquela altura ele estava em uma cruzada contra as mensagens não solicitadas e, por tabela, contra o WhatsApp. O então senador queria, através de uma lei, mudar a forma com qual mensagens eram enviadas no Brasil.

Primeiro, saiu na imprensa que ele estava de bronca com o WhatsApp por receber tantas mensagens não desejadas. Quem nunca. Segundo informação da Revista Época, o senador queria que o WhatsApp criasse uma espécie de caixa de spam, para a qual iriam todas as conversas desaplaudidas.

Ainda em 2017, o Senado embarcou em um projeto, de autoria da senadora Vanessa Grazziotin (PLS nº 347/2016) que buscava alterar o Marco Civil da Internet para "exigir o prévio consentimento do usuário nos processos de cadastramento e envio de convites para participação em redes e mídias sociais, bem como em seus respectivos grupos, páginas, comunidades e similares". Ou seja, a lei queria acabar com a farra das inclusões em grupos de WhatsApp.

Jucá, ao apresentar o seu parecer sobre o projeto na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, foi além: sugeriu a alteração do texto para que a inclusão não solicitada em grupo de WhatsApp gerasse dano moral presumido. Foi incluído no grupo do colégio sem pedir? Dano moral! A bem da verdade, dependendo do que se discute no grupo do colégio, o ex-senador está com toda razão.

A tecnologia não costuma esperar pela lei. Como a lebre orgulhosa da fábula de Esopo, ela dispara na frente com a certeza de quem sabe ser mais veloz. Nessa semana, o WhatsApp anunciou que permitirá que usuários possam optar entre vetar serem incluídos automaticamente em grupos (a inserção poderá ser feita apenas por seus contatos), e manter a inclusão livre para quem tiver o seu número, como acontece hoje.

Tudo indica que essa importante mudança veio na esteira das eleições indianas e que ela assimila algumas lições das eleições no Brasil. De aplicativo para mensagens particulares instantâneas, o WhatsApp foi transformado em uma verdadeira ferramenta de broadcast, replicando conteúdo de um grupo a outro e espalhando desinformação.

Se não dá para dizer que o WhatsApp mudou para atender aos apelos dos senadores brasileiros, o que essa história de transformação da plataforma ensina sobre a relação entre a lei e a tecnologia?

As grandes empresas de tecnologia não precisam esperar pela aprovação de leis para mudar a forma pela qual as suas aplicações são utilizadas por milhões de pessoas. Elas são livres para inovar e a cada nova atualização a imprensa especializada corre atrás para explicar o que mudou, porque mudou e quais os impactos da mudança. As plataformas não precisam esperar as leis para fazer as mudanças que julguem importantes.

No último mês, tanto Microsoft como Facebook vieram à frente com manifestações de seu Presidente e CEO, respectivamente, pedindo mais coordenação entre governos e empresas. O que aconteceu para as grandes empresas de tecnologia pedirem por mais atuação governamental?

Logo após a chacina na Nova Zelândia, transmitida ao vivo pelo assassino na Internet, o presidente da Microsoft, Brad Smith, fez um apelo para que as empresas de tecnologia trabalhem juntas para prevenir situações como essa, para agir mais rápido em momentos de crise e para construir um ambiente online mais saudável. "Esse tipo de desafio é tão sério que demanda uma discussão ampla e a colaboração com representantes de governos e da sociedade civil pelo mundo afora" – disse.

Mark Zuckerberg, em artigo publicado no Washington Post, afirmou que a Internet precisa novas regras e que governos deveriam focar na criação de parâmetros para a remoção de conteúdo danoso e na regulação envolvendo eleições, privacidade e portabilidade de dados. "Eu acredito que nós precisamos de um papel mais ativo por parte de governos e reguladores. Ao atualizar as regras para a Internet nós podemos preservar o que há de melhor nela – a liberdade para pessoas se expressarem e para empreendedores inovar – ao mesmo tempo em que protegemos a sociedade de maiores danos" – afirmou Zuckerberg.

Ambas as falas estão bem distantes da postura mais refratária à regulação que se esperaria de empresas de Internet. O que mudou? As grandes plataformas e empresas de tecnologia têm entrado na mira de reguladores nos mais diversos países quanto mais importantes se tornam as suas aplicações.

Quando uma parte substancial da população conectada de um País é usuária de uma plataforma pode-se esperar que as decisões sobre como os conteúdos são compartilhados ou removidos vão além de uma orientação corporativa: elas passam a impactar sensivelmente o modo pelo qual a população se informa, se diverte e se organiza.

Dessa forma, se é verdade que as empresas são livres para inovar, elas passam também a recear que novas implementações ou funcionalidades possam gerar impactos negativos (muitos até imprevisíveis). Contar com uma regulação que estabeleça parâmetros e que permita avaliar se as empresas estão cumprindo com os mesmos se torna uma opção mais favorável do que simplesmente bater na tecla de que toda e qualquer regulação é prejudicial aos negócios.

O que as empresas estão pedindo é mais clareza sobre quais são as regras do jogo, evitando assim que elas fiquem nas mãos de governos que podem decidir, de um dia para outro – e em especial em casos de pânico moral – que toda a forma de identificação e remoção de conteúdo adotado pela plataforma está errada.

Existe ainda a preocupação sobre o quanto governos efetivamente entendem como a Internet funciona e, ao pedir por mais regulação, as empresas terminem com novas regras que exigem obrigações impossíveis (como a crença na infalibilidade dos filtros) ou tão genéricas (o que é "conteúdo danoso"?) que não permitam saber se as plataformas estão ou não cumprindo as suas determinações.

A lebre, o herói e a tartaruga

A tecnologia não costuma esperar pela lei. Na fábula de Esopo, a lebre – tão certa de que seria mais veloz do que a tartaruga – resolve tirar um cochilo e assim termina perdendo a corrida para a sua adversária. Na corrida pela regulação da Internet é fácil identificar a lebre com a tecnologia (por ser ágil e veloz) e o Estado como uma vagarosa tartaruga.

E se a verdade fosse o reverso? Vale imaginar o Estado como a lebre, seguro de que o seu poder normativo vai, mais cedo ou mais tarde, dobrar as grandes plataformas. A tecnologia, por outro lado, segue o seu rumo sem parar. Não existe tempo para sonecas quando se tem acionistas para atender e um mundo para conquistar.

Nos tempos antigos, a fábula de Esopo não era uma lição sobre a persistência da tartaruga, mas sim sobre a descuidada prepotência da lebre. Parece que nunca vivemos uma época tão propícia como a atual para criar novas regras para a Internet (ou para as grandes empresas que nela atuam). Existe uma crescente consciência em nível global sobre o poder das maiores plataformas e como elas precisam ter revisados parâmetros de atuação.

Mas quem vai dizer que padrões são esses? Será que a tecnologia não estará sempre, nas brechas da lei, inovando e criando formas inéditas de comportamento e de interações?

É também no mundo antigo que se encontra uma outra história sobre corridas e tartarugas. O pré-socrático Zenão de Eleia imaginou que Aquiles, herói grego, disputou corrida com uma tartaruga. Como ele não era nenhuma lebre descuidada, resolveu apenas dar uma distância de vantagem para a sua adversária. O paradoxo do movimento, explicava Zenão, é que Aquiles jamais alcançará a tartaruga. Quando ele chegar na posição A, em que a tartaruga começou a corrida, ela vai se encontrar mais na frente, na posição B. Quando ele chegar na posição B, a tartaruga já não estará mais lá, mas sim em uma posição C adiante, e continuando assim até o infinito.

Se escutarmos as lições dos tempos antigos vamos perceber que a velocidade da tecnologia não se parece com os rompantes de lebres e heróis, mas sim com o movimento perene de uma tartaruga.

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Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.