Aprovaram o #Artigo17 na Europa! O que muda na internet agora?
Carlos Affonso
26/03/2019 11h30
Na peça "O Mercador de Veneza", William Shakespeare conta a história de uma obrigação cujo cumprimento seria impossível: o credor tinha direito a retirar uma libra de carne do corpo do devedor, mas ele não poderia derramar uma gota sequer de sangue.
A aprovação do #Artigo17 (antigo #Artigo13) da Diretiva de Direitos Autorais pelo Parlamento Europeu nesta terça-feira exige das plataformas de internet algo bem parecido.
Para não ser responsabilizadas pelos conteúdos postados por seus usuários, elas devem adotar todas as medidas técnicas e jurídicas para impedir que obras protegidas por direitos autorais sejam divulgadas sem o respectivo licenciamento. Como fazer isso? Criando filtros.
Acontece que os filtros hoje existentes não sabem distinguir o que é de uso proibido e o que são as chamadas exceções e limitações aos direitos autorais. Por exemplo, citações e paródias são permitidas na lei e consistem em verdadeiros direitos dos usuários. O resultado? Citações e paródias serão filtradas como se fossem proibidas.
É ai que entra o fator "Mercador de Veneza": pela redação da diretiva aprovada, os provedores são forçados a adotar medidas para impedir violações aos direitos autorais (filtros!) e também devem garantir que os direitos dos usuários sejam respeitados e não venham a ser impactados pelas medidas adotadas para proteger o licenciamento das obras autorais.
Em inglês isso se chama "Catch 22" (algo como "ardil 22"). São situações em que solucionar uma parte do problema só cria outro problema, não levando à solução da questão original.
Há um desequilíbrio significativo na redação da diretiva entre os interesses dos titulares de direitos autorais e os dos usuários.
Para a violação dos direitos dos primeiros, existe todo um sistema de remoção de conteúdo, proibição de sua repostagem e etc. Mas e para os provedores que não respeitarem os direitos dos usuários? Tem como exigir que o provedor reposte o conteúdo erroneamente filtrado? Plataformas poderão ser sancionadas se repetidamente falharem em acertar a mão nos filtros?
O que vem pela frente agora
A próxima etapa é a análise do Conselho da União Europeia, mas poucos acreditam em uma mudança de rumo radical. Para isso acontecer seria necessário que algum dos países mais engajados no acordo que permitiu a votação da Diretiva voltasse atrás e liderasse uma dissidência.
O texto que foi aprovado no Parlamento é uma Diretiva e não um Regulamento (como a General Data Protection Regulation, o regulamento sobre dados pessoais que entrou em vigor em 2018). Regulamentos são diretamente aplicados em todos os países europeus, enquanto as Diretivas precisam ser incorporadas nos ordenamentos jurídicos nacionais. Os países terão até 2021 para fazer a transposição da Diretiva para o seu Direito interno e é esperado que diferentes regimes possam surgir, explicitando como os provedores deverão cumprir com essas novas obrigações.
De acordo com a EFF, a França parece determinada em assumir a liderança e fazer uma rápida implementação como parte do esforço do governo Macron em restringir o poder das grandes plataformas. Na Polônia, os membros do Parlamento enfrentam a resistência de eleitores que enxergam na diretiva uma severa restrição às liberdades na rede. Na Alemanha já se fala em implementação da diretiva não por filtros, mas sim por um sistema amplo de licenciamento de obras autorias.
Com diferenças substantivas esperadas nessa implementação, não são pequenas as chances de que a questão acabe sobrando para o Tribunal de Justiça da União Europeia, que deverá harmonizar a interpretação de termos genéricos constantes da diretiva.
Só para dar uma pista das confusões futuras, a Diretiva de Direitos Autorais deveria ser com a antiga Diretiva de Comércio Eletrônico, que explicitamente isenta os provedores de obrigações de monitoramento ativo dos conteúdos postados por seus usuários. Essa isenção foi inclusive confirmada pelo Tribunal em 2011. Não será surpresa se o tema for contestado nesse sentido.
A internet vai acabar na Europa com a aprovação do #Artigo17? Claro que não. A redação final da diretiva exclui de sua aplicação as enciclopédias online gratuitas (como a Wikipedia), repositórios educacionais e científicos sem fins lucrativos, plataformas para o desenvolvimento e compartilhamento de softwares com código aberto, marketplaces e serviços de nuvem B2B.
Mas ela ainda pega várias modalidades de plataformas que se enquadrem no conceito de "serviços da sociedade da informação" cujo principal (ou um dos principais) objetivos, desempenhado com finalidade de lucro, seja o armazenamento ou a disponibilização ao público de acesso a um grande volume de obras protegidas por direitos autorais cujo upload foi feito por seus usuários.
A diretiva inverte a lógica até então dominante e que sempre pareceu fazer sentido no senso comum: quando você posta algo na rede social ou em um site de vídeo, é você quem está postando o conteúdo e deveria, em última instância, ser o responsável pelo material.
Agora o ato de postar uma foto, vídeo ou texto em uma plataforma é, antes de mais nada, uma comunicação ao público daquela obra feita pela plataforma (e não por você), sendo a plataforma responsável caso não adote as medidas para licenciar o material ou impedir a sua disponibilização.
Grandes provedores que vivem de postagem de conteúdos de terceiros fizeram campanhas barulhentas contra a diretiva. É claro que eles saem perdendo nesse cabo-de-guerra porque, para evitar responsabilização, vão ter que licenciar todos os conteúdos que passam por sua plataforma (ou adotar medidas para impedir que eles ali apareçam). Muitas já fazem isso e apenas vão aumentar o uso de filtros para identificar conteúdos protegidos por direitos autorais (gerando toda sorte de equívocos nesse processo, como a remoção ou a retirada de remuneração de videos perfeitamente legais).
Mas, no final das contas, grandes provedores terão os recursos para buscar grandes acordos de licenciamento. Quem se deu mal mesmo com a aprovação da diretiva não foram os líderes dos seus respectivos segmentos, mas sim as empresas que estavam correndo atrás para crescer e para gerar novos meios de inovar dando voz aos seus usuários e permitindo novas formas de criação. Essas vão encontrar mais uma barreira para crescer. As grandes plataformas já estabelecidas agradecem.
Sobre o autor
Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.
Sobre o blog
A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.