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Carlos Affonso Souza

Ciência X achismo: combate ao coronavírus trouxe à tona o amadorismo

Carlos Affonso

30/03/2020 04h00

Gerd Altmann/ Pixabay

Sócrates dizia que "só sei que nada sei". Para o pai da filosofia ocidental a sabedoria estava no reconhecimento da sua própria ignorância. Essa percepção já teve dias melhores do que esses tempos estranhos de 2020. O mesmo vale para outras coisas que vieram da Grécia Antiga, como a exportação de azeite, a democracia e os jogos olímpicos.

Hoje em dia todo mundo sabe sobre tudo. E, na internet, em especial, o que não faltam são opiniões, achismos e teorias sem qualquer fundamento que, usando o amplo potencial de comunicação da rede, chegam a todos e a todo momento. Se já virou lugar comum falar em desinformação, fake news, bolhas e etc., um tema que parece ganhar proeminência nesses tempos de coronavírus é a trajetória da ascensão (e talvez da queda) do chamado "culto do amador".

Em 2007, no seu polêmico livro "O Culto do Amador: como blogs, MySpace, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores", Andrew Keen defendeu que a internet, ao dar voz a todos, tinha nivelado por baixo a qualidade da produção cultural do século XXI. A música particularmente era o foco do autor. Segundo ele, estávamos trocando artistas talentosos encontrados pela curadoria de grandes gravadoras por uma música de pior qualidade feita em um quarto de adolescente. Alô Arctic Monkeys e Billie Eilish!

O ataque de Andrew Keen não poupou a Wikipedia e os sites de jornalismo cidadão. Para o autor, o amadorismo estava contaminando a sociedade e invertendo os valores. O conhecimento aprofundado, nas artes e nas ciências, estava sendo solapado pela figura nobre e heroica do amador. Sendo assim, a superficialidade, a informalidade e a espontaneidade haviam tomado o centro do palco. Conhecimento técnico formal e aprofundado agora era opcional.

Não faltaram críticas ao livro de Keen, apontando como a sua tese poderia ser elitista e falhava em reconhecer o potencial democrático da explosão de acesso ao conhecimento gerada pela internet.

Acontece que Keen mirou no que viu e acertou no que não viu. Ao criticar os rumos da indústria cultural, o "Culto do Amador" hoje parece também servir para descrever o que se tornou a política no final dos anos 10. Dado o pavor com a velha política corrupta, o mantra do "não sou político" acabou elegendo muita gente. De carona, um estilo mais informal, avesso às velhas convenções, também se consagrou. Não foi sem espanto que muita gente viu políticos virando youtubers (e youtubers virando políticos) em uma simbiose perfeita entre espetáculo, entretenimento e política pública.

Mas o que acontece quando as autoridades se comportam como amadoras ou se baseiam em conteúdo amador para tomar decisões que impactam todo um país? Como o próprio Andrew Keen se pergunta em um podcast que o autor lançou mais recentemente sobre política: a democracia está morrendo ou simplesmente trocando a sua pele analógica para uma versão mais nova e adequada à era digital?

Enquanto buscamos respostas sobre como será o futuro da política em tempos de rede sociais, o combate ao coronavírus parece ter jogado luz sobre a questão do amadorismo. Quando a saúde individual e de toda a coletividade está em jogo, subitamente o conhecimento técnico parece essencial para imaginar os cenários adiante e tomar a melhor decisão. O debate instalado no Brasil sobre isolamento horizontal e vertical é um bom exemplo. Você já tinha ouvido falar nesses termos antes de 2020? Se a sua resposta foi negativa esse é um sinal de que você talvez não seja um especialista e a sua posição sobre o tema, assim como a minha, entram na categoria de "opinião" e não de ciência.

O debate esquentou no país depois de um pronunciamento [veja o vídeo abaixo] do presidente da República sobre o combate ao coronavírus. Bolsonaro defendeu o fim do regime de isolamento social amplo (horizontal), conforme determinado em vários estados, e a necessidade da economia do país não parar. O presidente, contrariando o que até então recomendava o Ministério da Saúde, minimizou os efeitos do vírus e afirmou que o Brasil precisava voltar à normalidade, com a população fora do grupo de risco retomando a sua rotina de trabalho.

A reação veio rápido. Muitos defenderam o ponto de vista do presidente apontando que a onda de recessão que viria após a paralisação das atividades seria mais danosa do que lidar com a crise do coronavírus. Do outro lado, chamou atenção o fato de que grande parte das críticas à fala do presidente bateram na tecla de que o seu discurso estava desconsiderando as recomendações dos especialistas em saúde pública.

O presidente do Senado, em carta divulgada logo após o pronunciamento disse que a hora era para se "ouvir os técnicos e profissionais da área". O presidente da Câmara condenou o discurso do presidente por atacar "os especialistas em saúde pública".

Em nota divulgada no dia seguinte ao discurso, a Sociedade Brasileira de Infectologia lamentou o ponto de vista do presidente e afirmou que "do ponto de vista científico-epidemiológico, o distanciamento social é fundamental para conter a disseminação do novo coronavírus quando ele atinge a fase de transmissão comunitária". Segundo o mesmo comunicado, a opção por "ficar em casa é a resposta mais adequada para a maioria das cidades brasileiras neste momento, principalmente as mais populosas."

O Conselho Nacional dos Secretários de Saúde lembrou que todas as recomendações do Ministério da Saúde "têm se baseado em evidências científicas, na realidade nacional e internacional e buscado inspiração nas melhores práticas e exemplos de condutas exitosas ao redor do mundo." A nota termina ressaltando que a fala do presidente "dificulta o trabalho de todos, inclusive de seu ministro e técnicos".

Será que a discussão sobre a melhor forma de se combater o coronavírus pode representar um momento de inflexão na forma pela qual se faz política no mundo? Será que a preservação da saúde e da vida vão falar mais alto e trazer de volta os especialistas para o centro da mesa de debates sobre os próximos passos no enfrentamento da crise?

Podemos e/ou devemos flexibilizar o regime de isolamento determinado nos estados? Que a restrição às atividades comerciais vai gerar um impacto forte na economia brasileira e mundial não há dúvida. Mas em que medida estamos prontos para retomar algumas atividades quando o pico da epidemia ainda não chegou no Brasil e o risco de colapso no sistema de saúde é real?

Para responder a essa pergunta é preciso resolver uma equação que mistura fatores ligados à área da saúde, da economia, dos direitos e ainda demanda uma boa dose de estatística e análise dos recentes cenários internacionais. Não vamos resolver esse imbróglio trocando os especialistas nas respectivas áreas por qualquer opinião veiculada em um grupo de WhatsApp.

E aqui vale levantar um ponto difícil. Você já deve ter visto vários videos de pessoas falando sobre como o comércio, as aulas e a rotina de todos os brasileiros que não estejam no grupo de risco precisa voltar ao normal. Não há dúvidas que a vida das pessoas já está e será ainda mais afetada com a paralisação das atividades.

A necessidade de se escutar os técnicos para tomar decisões não implica em desconsiderar os relatos individuais de quem vai nas redes comunicar as suas opiniões sobre como está vendo o enfrentamento da crise. São as nossas vozes individuais que, juntas, podem gerar transformações políticas. Acontece que a solução para a emergência de saúde que atravessamos passa pela política, mas a chave que abre essa porta é a ciência. Precisamos de mais pesquisa para entender como o vírus está se espalhando no Brasil e como as táticas de enfrentamento podem variar em diferentes regiões do país.

O combate ao coronavírus pede menos amadores e mais pesquisadores. Pede menos memes e mais médicos.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.