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Carlos Affonso Souza

Postagens em redes sociais podem barrar a sua entrada em outros países?

Carlos Affonso

06/09/2019 04h00

Primeiro foi a China. Deputados do PSL não deveriam ter ido em missão para aquele país porque a nossa tecnologia de reconhecimento facial jamais será vermelha — mas já tem gente usando por aqui. O governo nem tinha esquentado e já estavam as pessoas (e os robôs) nas redes sociais pontificando sobre o comunismo chinês.

Depois foram os países islâmicos porque a embaixada tinha que ser em Jerusalém. Lá foram todos para as redes disputar visões sobre como a ausência de paz no Oriente Médio é culpa do outro.

Em seguida a Noruega ameaçou retirar a sua contribuição do Fundo Amazônico. A gente ia deixar barato? A resposta veio com o compartilhamento de um vídeo de noruegueses matando baleias. Acontece que não eram noruegueses, mas dinamarqueses. Esse detalhe passou despercebido. Muita gente retuitou o conteúdo passando adiante comentários ofensivos feitos sabe-se lá por quem.

A Alemanha então reclamou do desmatamento na Amazônia. E o que eles fizeram com as florestas deles? Se uma árvore cair na floresta negra, e ninguém estiver por perto para escutar, a queda faz barulho? Não, até porque nem deve ter mais árvores por lá. Essa parece ter sido a conclusão de muitos que foram às redes sociais criticar a política ambiental alemã. É claro que sobrou também para a chanceler Angela Merkel, alvo de comentários que provavelmente jamais seriam feitos ao vivo. Na internet é tudo mais fácil.

E o Macron, hein? Puxados pelo exemplo, não faltou quem fosse nas redes ridicularizar a primeira-dama da França. É verdade que o presidente francês chamou o nosso de mentiroso e que seu posicionamento no G7– conforme admitiu Bolsonaro – alimentou o discurso de defesa da soberania nacional sobre a Amazônia. Mas o que a esposa do presidente alheio tem a ver com isso mesmo?

Vale ainda lembrar das ditaduras em países vizinhos sobre as quais os brasileiros também tomaram gosto por opinar. Além da Venezuela e de uma breve menção ao Paraguai durante os entreveros sobre Itapu, a bola da vez é o Chile.

O brasileiro cordial definitivamente aprendeu a puxar briga na internet. Acontece que todos os episódios acima não são discussões entre particulares (embora às vezes pareçam ser), mas sim questões de Estado alçadas pelos tempos modernos ao fórum público das redes sociais. O que ontem era debatido nas salas de reuniões dos organismos internacionais hoje virou trending topic, hashtag e tuitaço.

Existe um aspecto positivo nisso tudo que é fazer chegar no indivíduo questões de interesse nacional. O problema é como essas pautas são construídas — por quem e com quais objetivos — e de que forma a mobilização ao redor delas passou a ser um fator de decisão sobre qual direção tomar.

Nesse ponto, o fato da internet ser uma terra sem fronteiras faz com que a mobilização nas redes sociais em um país seja rapidamente percebida em outro. Acontece que não raramente essas mobilizações estão longe de promover um debate ordenado sobre os temas em questão. O que temos visto nesse ano até aqui é a internacionalização do insulto.

Uma razão que explica esse fenômeno é a aparência de anonimato que a internet confere a cada um. Se isso já é verdade nos debates nacionais, nos quais todo mundo se xinga na mesma língua, o que dizer dos impropérios ditos para um líder estrangeiro? A impressão de que o ataque ou a zombaria jamais voltará contra o seu autor é grande. Tudo isso somado, claro, ao espírito de grupo que faz com que cada pequeno insulto se perca em um oceano de outros tantos.

Juridicamente falando, nada impede o líder de um país de processar um nacional de outro por comentários feitos na internet. Mas não é preciso ir tão longe para se entender um efeito bem prático desse movimento de ataques e gozações. E tudo começa com um visto negado.

As equipes de controle de imigração e emissão de vistos estão cada vez mais de olho nas redes sociais de quem procura viajar para outro país. Os Estados Unidos deram a largada ao solicitar a indicação de contas nas redes sociais usadas nos últimos cinco anos para a obtenção de visto.

O monitoramento de redes sociais não é piada. Antes de embarcar para um feriado em Los Angeles, um turista postou nas redes sociais que naquela semana ele iria "destruir a América". Quando chegou ao aeroporto americano, sua entrada foi negada por mais que ele argumentasse que a destruição, no contexto da mensagem, era uma linguagem figurada.

Um estudante palestino, que havia sido aceito em Harvard, teve a sua entrada negada também nos Estados Unidos por conta de postagens contra aquele país nas redes sociais. Acontece que, nesse caso, as postagens foram feitas por seus amigos e por isso exibidas no feed da rede social. O estudante argumentou que ele não havia curtido, compartilhado ou comentado as postagens. Nada feito, foi mandado de volta.

Quanto tempo mais para que outros países comecem a adotar uma postura ativa de vigilância nas redes sociais, especialmente quando exista algum grau de animosidade entre o país de origem do viajante e o de seu destino? Pode parecer bobagem e que nunca a imigração de um país iria se preocupar em revirar as redes sociais de todos os visitantes, mas não custa lembrar que aplicações de inteligência artificial tornam essa tarefa simples e automatizada.

Com reconhecimento facial nos aeroportos, controle de passaporte no embarque e desembarque, além de outros pontos de coleta de dados, não é difícil perceber que cada vez mais o oficial da imigração possui um número maior de informações sobre você. Resta saber o quanto você se exaltou nas redes sociais em controvérsias internacionais e o que pode ser feito com isso.

O caso da negativa de entrada nos EUA por conteúdo de terceiro ativa um alerta importante sobre esse cenário de vigilância de redes sociais, já que não se trata mais apenas do que você posta, mas também do tipo de conteúdo que seus amigos publicam nas redes.

Agora que aprendemos a comprar brigas públicas na internet, vale ficar de olho nas suas companhias e verificar o quanto eles andam por aí brigando sobre o comunismo chinês, a situação do Oriente Médio, a matança de baleias nórdicas, a preservação das florestas alemãs, a idade da primeira-dama francesa e os efeitos das ditaduras paraguaia, venezuelana e chilena. Mesmo sem saber você pode estar viajando com itens não permitidos como preconceito, xenofobia, intolerância e outros materiais explosivos.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.