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Carlos Affonso Souza

Não adianta: vigília pública de redes sociais de magistrados é inevitável

Carlos Affonso

23/08/2019 04h00

"O juiz não é um cidadão comum". Foi a partir dessa noção que uma norma sobre o uso das redes sociais por magistrados começou a ser debatida no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), gerando críticas de magistrados.

Mas o que difere o juiz de todos os demais cidadãos no uso das redes sociais? Eu e você podemos nos filiar a um partido e fazer campanha nas redes por esse ou aquele candidato. O juiz não. Eu e você podemos ir a público criticar decisões judiciais. O juiz não. Eu e você, se formos atacados nas redes, podemos responder diretamente. O juiz não deveria. O recomendado é recorrer à assessoria do tribunal. Eu e você podemos fazer várias postagens autopromocionais nas redes. E o juiz?

A Constituição proíbe que juízes tenham atuação político-partidária. Mas será que isso significa que juízes deveriam ser apolíticos? Essa restrição parece ser ainda mais difícil quando qualquer um tem ao seu dispor um meio de veiculação de ideias e opiniões tão veloz como as redes sociais. Quem nunca sentiu aquela vontade de desabafar nas redes sociais? Garanto que essa sensação compartilhamos todos nós, incluindo os juízes.

O que se procura preservar no caso é a imparcialidade do julgador e a imagem do Poder Judiciário. Ao se manifestar politicamente, o juiz poderia se comprometer e ser questionada a sua condição para apreciar um caso futuro. Mas qual seria a melhor solução? Proibir as postagens (o que pode esbarrar em restrições à liberdade de expressão) ou deixar que tudo se resolva depois com questionamentos sobre imparcialidade?

Foi-se o tempo em que adivinhar como um juiz vai decidir um caso era uma arte que dependia de enorme vivência nos fóruns e um conhecimento profundo sobre o pensamento de cada magistrado sobre questões jurídicas, políticas e sociais. Hoje, no Brasil e lá fora, previsões sobre futuros julgamentos começam a ser feitas com base em aplicações de inteligência artificial, minerando o histórico de decisões de julgadores e colegiados. Você acha que as postagens em redes sociais também não vão entrar na roda?

A Corregedoria do Ministério Público Federal anunciou recentemente que iria passar a fazer um monitoramento semanal de postagens nas redes sociais por integrantes do MP. O objetivo seria prevenir queixas e aberturas de inquéritos administrativos disciplinares. A Associação Nacional dos Procuradores da República prontamente indicou contrariedade com a medida.

O anúncio veio na escalada de questionamentos sobre o uso de aplicativos de mensagens e das redes sociais por integrantes da força-tarefa da operação Lava Jato. Segundo o Corregedor do MPF, as postagens de integrantes do MP "têm repercutido intensamente nos meios de comunicação brasileiros, com graves consequências para a imagem não apenas de membros como da própria instituição". Após a repercussão negativa, a Corregedoria voltou atrás e informou que não vai fazer um monitoramento das redes sociais, mas apenas um clipping de notícias que sejam veiculadas na imprensa e que repercutam negativamente manifestações de membros do MP.

Não tem jeito: o esclarecimento de algumas das principais questões políticas do Brasil passam e passarão cada vez mais pela atuação de juízes, promotores e procuradores. Os holofotes da imprensa não estão mais apenas voltados para as decisões, despachos, denúncias e demais atos protocolares. As redes sociais abriram todo um novo leque de comunicação e, consequentemente, de atenção sobre os protagonistas desses casos. Muito mais bombástica do que qualquer entrevista pode ser uma postagem de um juiz ou de um procurador.

Engana-se quem pensa que a totalidade dos problemas envolvendo autoridades e redes sociais está naquilo que se posta. A lista pública de amigos ou de pertencimento a certo grupo online pode também dar margem a questionamentos. Será que um advogado pode ser amigo de um juiz nas redes sociais? E participar de um grupo de WhatsApp?

A regra não é clara quando os limites que achávamos que conhecíamos migram para as redes sociais. E mesmo fora delas, os universos da Política e do Direito parecem passar por uma crescente atração. Não por outro motivo, alguns juízes obtiveram tamanho protagonismo ao trocar a magistratura por cargos de natureza política.

É curioso perceber como alternamos entre dois extremos. Em certos momentos se procura repudiar toda e qualquer atuação de juízes e procuradores que possa parecer política. No momento seguinte, a afirmação de que "tudo é política" ou ainda que "a única saída para o Brasil está na política" são repetidas como mantras.

Em momentos de crise, quando o velho já se foi e o novo ainda está por ser construído, é sempre fácil recorrer à noção de senso comum. Mas em um país tão dividido e com bolhas de informação turvando o entendimento aqui e ali, parece que nem mesmo o senso comum – aquele denominador ao qual todos recorrem – pode mais ser evocado. E é justamente nessa conjuntura em que todos querem se manifestar.

Já que estamos falando em mantras, talvez o melhor remédio venha mesmo da tradição zen-budista, que ao formular questões (koans) de resolução racionalmente impossíveis, assim adverte: "quando falar e calar são ambos inadmissíveis, como evitar o erro?"

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.