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Carlos Affonso Souza

Filmar o professor não é direito do aluno

Carlos Affonso

04/05/2019 04h00

Com tanto verbete, vídeo-aula e animações disponíveis na Internet, o tempo em sala de aula com os alunos é cada vez mais precioso. No meio desse oceano de informação, a aula é o momento de organizar o conhecimento, despertar a curiosidade e o pensamento crítico dos alunos, dando a eles as ferramentas para seguir em frente. Tudo isso ao vivo, cara-a-cara.

Hoje em dia o Brasil discute o que os professores estão fazendo em sala de aula. Isso seria uma boa notícia se o debate estivesse recaindo em metodologias de ensino, no uso de tecnologias ou nas formas de se manter o foco dos alunos em tempos de crise de atenção. Mas não é nada disso: o que se discute hoje é a necessidade de se filmar os professores em sala de aula como um mecanismo de defesa contra a imposição de visões políticas. Como chegamos nesse ponto?

O Ministro da Educação disse recentemente que filmar professores em aula é um direito dos alunos. Acrescentou ainda que irá analisar os vídeos compartilhados nas redes sociais pelo Presidente e por seu filho, Carlos Bolsonaro, para averiguar se alguma irregularidade foi cometida pelos educadores.

Em um dos vídeos compartilhados, uma aluna (que também é secretária-geral do PSL em Itapeva-SP) contesta uma professora que teria feito críticas ao governo e às ideias de Olavo de Carvalho em sala de aula. Em outro, professor e aluno discutem aos berros. Segundo o vereador Carlos Bolsonaro, que compartilhou esse vídeo, "gravar/filmar aulas é ato de legítima defesa contra predadores ideológicos disfarçados de professores".

Do jeito que a discussão está colocada não vamos chegar a lugar nenhum. Nem bem é direito do aluno filmar o professor em sala de aula sem a sua autorização, nem deve o professor impor uma visão política enquanto leciona. Ambas as condutas parecem desconhecer o que diz a legislação brasileira.

Falando sobre política em sala de aula

Um dos fundamentos que justificaria a filmagem de professores em sala de aula seria a doutrinação feita pelos educadores, que estariam levando debates sobre política para a sala de aula. Falar sobre política durante a aula não é o problema, mas sim como se fala.

É perigoso tratar o debate sobre política em sala de aula em termos absolutos: ora dizendo que qualquer menção à política é um desvirtuamento da missão do professor, ora afirmando o justo contrário, que dar consciência política ao aluno seria a missão número um do docente.

Existem aulas e aulas, temas mais ou menos afeitos ao debate sobre política e mil formas pelas quais esse debate pode chegar em sala de aula. Independentemente da resposta, uma coisa é certa: as escolas e as universidades não vivem em um tubo de ensaio, desconectadas do que acontece no Brasil e no mundo.

Não tratar de política em sala de aula é criar um país de idiotas, no sentido clássico do termo. Aqui não vai nenhuma ofensa. Como se sabe, o termo grego idiotes se referia à pessoa que não se interessava pela coisa pública, que estava afastada dos debates sobre o futuro da pólis. Para ela só interessaria o privado, a sua família, a sua propriedade, como se tudo isso pudesse existir em separado da vida pública e dos rumos da sua Cidade-Estado.

Ao chegar no latim, o termo idiota já havia ganho a conotação pejorativa que hoje conhecemos. É um idiota não apenas aquele que não se importa com a coisa pública, mas também o tolo, o parvo, aquele que é facilmente manipulável.

Sendo assim, falar mais (e não menos) sobre política é que vai garantir que os nossos alunos não sejam facilmente manipuláveis e possam desenvolver um pensamento crítico baseado em fatos, estudos e argumentos que fogem do mero achismo e da pirotecnia retórica.

O desafio é como introduzir esse componente em sala de aula sem que o professor imponha a sua percepção como sendo a única ou a mais correta, descartando a diversidade e a tolerância, ao arrepio do que exige a legislação. Esse objetivo que se procura alcançar não será atingido simplesmente banindo a política de sala de aula ou ameaçando os professores com filmagens de celular.

O que diz a legislação? A Constituição Federal, em seu artigo 206, afirma que o ensino terá como princípios a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II), além do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas (art. 206, III). Da mesma forma, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu artigo 3º, acrescenta como princípios do ensino o respeito à liberdade e apreço à tolerância (art. 3º, IV).

O que esses princípios comandam não é o desaparecimento da política em sala de aula, mas sim a preservação de uma zona de liberdade para o professor conduzir as suas atividades de ensino, sempre de olho no pluralismo de ideias e na tolerância. Então por que a filmagem da aula não pode ser uma forma de induzir o professor a cumprir esses princípios?

Porque assim como uma aula sem diversidade e sem tolerância vai contra a legislação em vigor, a filmagem de uma aula sem autorização do docente também.

É proibido filmar

A Constituição Federal, no artigo 5º, X, afirma que a privacidade e a imagem são invioláveis, garantindo a indenização por danos materiais e morais decorrentes de sua violação. Pode-se argumentar que o professor não teria direito à privacidade quando se encontra em um local público (ou de frequência coletiva) como uma sala de aula. O direito à imagem, aqui entendido como o direito de impedir a reprodução de seus aspectos fisionômicos sem a sua autorização, parece gerar um debate mais promissor.

Mas para além da imagem, é preciso compreender que a aula, como uma forma de organização e de exteriorização do conhecimento, é uma obra protegida por direitos autorais. Pouco importa se a aula é boa ou ruim, ela representa uma criação intelectual do docente e toda manifestação criativa e original é protegida pela legislação.

Nesse sentido, a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9610/98), determina em seu artigo 46, IV, que não constitui ofensa aos direitos autorais "o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou."

A regra é clara: a aula é propriedade intelectual do professor. O aluno pode tomar notas daquela comunicação que lhe é dirigida, mas não pode divulgar o seu conteúdo sem autorização do docente.

Alguns vão dizer que a lei está falando de anotações em cadernos e que, com o avanço da tecnologia, seria preciso ampliar essa interpretação para permitir a gravação ou filmagem, desde que não divulgadas. Aqui vale lembrar que a gravação e a filmagem não são o mesmo que o "apanhado de lições", já que elas retratam literalmente o que foi dito, sem passar pelo filtro intelectual do aluno, que tomará nota cada um do seu jeito, fazendo as correlações, abreviações e organizações que achar melhor.

A especialista em direito autorais, Eliane Abrão diz que "o inciso IV do art. 46 veda a publicação por terceiros, mais especificamente pelos alunos, das aulas e ensinamentos de seus professores, sem a autorização destes. Nem mesmo parcialmente podem os alunos transcrever e reproduzir as aulas por meios gráficos ou áudio e/ou visuais, em nome, e com nome dos professores, salvo expressa autorização destes."

Sendo assim, a gravação ou filmagem da aula dependerá de autorização do docente. Algumas escolas ou universidades podem até mesmo uniformizar a questão esclarecendo sobre a existência de uma permissão ou proibição global, ou mesmo deixando a cargo de cada docente decidir o que fazer.

Nunca me incomodei que alunos gravassem as minhas aulas, contanto que isso fosse solicitado. Sobre o que escrevo no quadro-negro ou os slides que passo em sala, já desisti de tentar entender o que motiva os alunos a tirarem fotos dos slides quando eles sabem que enviarei os mesmos depois para a turma. Parece que o fato de tirar foto do momento em que o slide ou o tema apareceu no quadro faz parte da experiência de se estar em sala de aula. São costumes estranhos.

O que se quer evitar é que a filmagem e a gravação virem instrumentos de coação, restringindo a liberdade de cátedra, já que uma gravação isolada pode facilmente ser tirada de contexto. Nada disso impede que alunos possam filmar e gravar provas do cometimento de algum ilícito. Isso nada tem a ver com a transformação da filmagem como regra em sala de aula.

Como em todo final de aula, é sempre bom recapitular. Não é direito do aluno filmar o professor em sala sem a sua autorização, nem deve o professor impor uma visão política enquanto leciona. Ambas as condutas desconhecem o que diz a legislação brasileira e queimam o filme de quem as pratica. Gravou?

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.