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Carlos Affonso Souza

Facebook é jardim ou praça? O que está por trás do foco na privacidade

Carlos Affonso

01/04/2019 04h00

O Facebook não é mais o mesmo depois do escândalo envolvendo o uso eleitoral de dados pela empresa Cambridge Analytica. Esse caso mudou a forma como as pessoas enxergam o papel não apenas da empresa, mas também das redes sociais como um todo.

O modelo de uma rede social aberta, em que anunciantes se comunicam com usuários com base em seus hábitos de navegação, curtidas e compartilhamentos foi a raiz para que algumas das principais eleições dos últimos anos tivessem os seus resultados, ao menos em parte, atribuídos às redes sociais.

Nunca foi tão fácil conhecer quem está do outro lado da tela e isso pode ser usado para vender produtos cada vez mais atrativos ou para espalhar mensagens políticas cada vez mais convincentes.

Com a revelação do esquema da Cambridge Analytica, a suspeita de muitos de que as redes sociais são perigosas ou indesejadas se confirmou. Elas causariam mais estrago do que trariam benefícios – alguns poderiam pensar.

Lá no fundo, está mudando o modo como muitos enxergam a Internet e para quais fins e de que modo deveriam funcionar as redes sociais. Os recentes casos de violência – com fóruns da dark web servindo como suporte para os atiradores de Suzano e o massacre em mesquitas na Nova Zelândia sendo transmitido por uma live no Facebook – só alimentam essa percepção.

O Brasil desenrola um capítulo especial nesse contexto, já que o presidente Bolsonaro atribui uma parcela importante da sua eleição ao poder de comunicação direta (e pretensamente sem intermediários) das redes sociais. Essa exaltação das mídias sociais convive com a constante queixa de que as mesmas poderiam censurar conteúdos alinhados com essa ou aquela visão de mundo.

Qual seria então o futuro das redes sociais (e em especial do Facebook) nesse novo cenário? Mark Zuckerberg recentemente publicou um texto no qual faz uma aposta: para ele, o futuro do Facebook está em uma rede com mais privacidade, focada em mensagens privadas e criptografadas.

Mas como uma empresa que vive da exploração dos dados que são compartilhados por seus usuários vai monetizar comunicações privadas e criptografadas (cujo conteúdo, a princípio, nem mesmo a empresa consegue enxergar)? O que significa essa aposta na privacidade e na comunicação mais pessoal?

O Facebook já tinha feito um movimento para privilegiar conteúdos mais pessoais na plataforma em detrimento de conteúdos noticiosos. Olhando em retrospecto, talvez esse tenha sido um primeiro passo para consagrar a ideia de que a rede social poderia ser – na linguagem do próprio Zuckerberg – tanto uma "praça pública" (town square) como uma "sala de estar"(living room).

O próprio texto de Mark Zuckerberg reconhece esses dois modelos podem coexistir, embora aponte que o foco da empresa estaria mais no segundo do que no primeiro. Alguma forma de feed de notícias público continuaria a existir e ali todos poderiam compartilhar conteúdos e gerar uma discussão coletiva, como em uma praça. Mas também existiriam espaços mais privados, em que apenas compartilharíamos coisas com quem confiamos e que escolhemos ter mais por perto. Essa "sala de estar" seria o futuro da plataforma.

O problema é que todo o debate sobre fake news e desinformação parece estar migrando para aplicativos de mensagem que permitem uma comunicação mais privada e fora dos olhares públicos. Justamente esse tipo de comunicação que Zuckerberg diz ser o foco das atenções da empresa. Mas na medida em que esses aplicativos implementem criptografia ponta a ponta como padrão, e até hoje não tendo sido estabelecido um modelo de negócio para esse tipo de comunicação, fica a dúvida sobre como a empresa procurará monetizar o uso dessas ferramentas.

No caso do WhatsApp, temos uma ferramenta de comunicação com criptografia de ponta a ponta, feita para servir como um mensageiro privado, mas que, com a formação de grupos acabou se transformando em instrumento de broadcast. Pulando de grupo em grupo, o mesmo conteúdo falso viraliza em uma cadeia de desinformação. O que era para ser um espaço para conversas privadas se transformou em instrumento de mobilização pública.

A praça é nossa?

A dinâmica entre espaços públicos e privados é tema sempre presente em estudos que vão da arquitetura à sociologia. Nos anos oitenta, Nelson Saldanha publicou um texto seminal chamado "O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica". Para o autor, o jardim e a praça representariam não apenas duas formas distintas de organização do espaço físico, sendo uma privada (como o jardim interno de uma casa) e a outra pública, mas elas também importariam em imagens que simbolizam o comportamento das pessoas, o seu modo de viver e de enxergar o mundo.

Ao olhar para o Brasil, o autor enxergou lá atrás os fenômenos do personalismo e da corrupção pela lente da confusão entre o jardim e a praça. Não faltam exemplos de autoridades que tratam a coisa pública apenas para colher benefícios estritamente privados. De certa forma, essa gente acha que a praça deveria ser o seu jardim. Felizmente, o combate à corrupção nos últimos anos vem procurando reverter esse cenário.

Mas em tempos de WhatsApp uma outra questão se revela: a transformação do jardim em praça. Na medida em que os grupos apenas servem para retransmitir um mesmo conteúdo, a comunicação que deveria ser íntima, pessoal e privada se transmuta em mera replicação de palavras de ordem e coordenação de campanhas que visam a gerar impacto fora dos limites do grupo. A ambição desse jardim instrumentalizado é dominar a praça.

E o que pode acontecer quando os jardins coordenados conseguem impor as suas palavras de ordem e tomar a praça? Eles podem tratar a praça como se fosse um jardim, voltando assim ao problema original de personalismo e confusão entre o público e o privado. O risco não é pequeno e uma parte importante dessa estrutura está ancorada em ferramentas tecnológicas.

Entra em cena então um último ponto que se destaca no comunicado de Mark Zuckerberg: a integração de dados entre várias plataformas detidas pela empresa, como Facebook, Messenger, Instagran e WhatsApp. Ao integrar os dados dessas aplicações, a empresa estaria no final das contas criando um super app, que ao mesmo tempo garante a privacidade das conversas e consegue gerar monetização a partir de recursos diversos.

Não faltam meios para monetizar um super-app, ainda que ele seja focado nas mensagens privadas criptografadas: pode-se explorar outros dados pessoais que não venham do conteúdo das conversas (como geo-localização), desenvolver meios de pagamento na plataforma ou mesmo apostar em novas aplicações (como realidade virtual).

O que falta ser respondido nesse novo rumo que o Facebook aponta para as redes sociais é justamente a convivência entre o jardim e a praça. Ao afirmar que existe um lugar no futuro para os dois modelos de interação, Zuckerberg também confirma que as tensões que vemos hoje entre os dois espaços serão transportadas para esse novo cenário.

Será que os jardins ainda continuarão a ser instrumentalizados para gerar impactos na praça? E o que acontece quando uma mesma empresa detém o controle da praça e dos jardins? Como lembra Ronnie Von, será que no futuro teremos o mesmo banco, a mesma praça e o mesmo jardim?

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.