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Carlos Affonso Souza

Quem divulga vídeo tido como ofensivo se torna também ofensor

Carlos Affonso

12/03/2019 04h00

Pedro Ladeira/Folhapress

O Carnaval de 2019 foi marcado pela chuva. Ela foi torrencial no Rio de Janeiro, de granizo em São Paulo e dourada na internet. Muito já se falou sobre a postagem feita pelo presidente Bolsonaro de um vídeo contendo cenas pornográficas protagonizadas em um bloco. Seria uma crítica generalizada ao Carnaval? Um aceno para a mobilização dos seus eleitores? A prova de que a campanha eleitoral ainda não acabou?

Se a campanha ainda não acabou, o Carnaval sim. Ao ser indagado sobre os impactos da publicação polêmica, o vice-presidente disse que "isso morre amanhã. Está morto amanhã. Tudo passa." Mourão, como os Los Hermanos, sabe que todo Carnaval tem seu fim. Mas será que os efeitos da postagem não podem respingar para além do reinado de Momo?

O vídeo que contém cenas pornográficas foi publicado pelo presidente em sua conta no Twitter acompanhado de um texto em que afirmava: "Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões."

Até a sua publicação por Jair Bolsonaro, o vídeo em questão não tinha alcançado um número expressivo de visualizações. A viralização veio, como era de se esperar, pelo impulso dado pelo presidente.

A conta de Bolsonaro no Twitter é um púlpito digital, aberto 24 horas por dia e com uma audiência cativa, pronta para comentar, criticar, compartilhar ou apenas para se informar sobre o que passa na cabeça da autoridade máxima da República. O que se divulga ali tem o potencial de moldar o discurso sobre um tema e de gerar pautas nacionais.

Todos nós usualmente publicamos nas redes sociais motivados pelos fins mais diversos: para se divertir, para extravasar, para compartilhar momentos importantes (e outros nem tanto) com amigos e estranhos. Tem gente até que publica por impulso.

Presidentes e autoridades, por sua vez, não gozam desse privilégio que é o descompromisso com aquilo que se publica. Os impactos podem ser relevantes e precisam ser calculados. Tudo o que é postado ali serve a um propósito e chega ao público como sendo uma comunicação do presidente ou de uma autoridade. Ou seja, o uso das redes sociais pelo presidente e demais autoridades é (e precisa ser) estratégico.

Se o objetivo com a postagem polêmica durante o Carnaval era realizar uma crítica sobre comportamentos, será que o compartilhamento do vídeo era mesmo necessário? De um lado a sua viralização torna a fala do presidente mais contundente, já que ela vem ilustrada pelo comportamento que se quer criticar. Por outro lado, vale lembrar, que a sua exposição se dá diretamente na conta do presidente, fazendo com que seja ele o divulgador do próprio conteúdo que procura combater.

O paradoxo não é novo. No livro "Além do Bem e do Mal", de 1886, Nietzsche já alertava: "aquele que combate monstruosidades, deve cuidar para que não se torne um monstro." A simbiose entre sujeito e objeto, caça e caçador, é acentuada em outro trecho em que o filósofo diz que "se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você".

Para além de qualquer especulação filosófica, essa passagem traz também conotações jurídicas. Quem divulga um vídeo que reputa como ofensivo pode acabar se tornando também um ofensor.

Existem formas de dar ciência de que algo existe sem que todos sejam expostos ao mesmo conteúdo.

O presidente poderia ter feito uma crítica ao comportamento apenas em texto de forma mais genérica ou mais específica. Se quisesse ir além das palavras, poderia ter postado uma foto, um frame do próprio vídeo, talvez até ocultando qualquer exposição de nudez alheia. Se quisesse ir além das palavras e das fotos, poderia ter postado apenas o link para o vídeo, com a advertência de que o conteúdo seria de natureza gráfica. Quem quisesse que seguisse o link e o conteúdo em si estaria hospedado em outro lugar. Se optasse, ao contrário, por incorporar o vídeo e postá-lo em sua conta (como acabou optando), o Twitter permitiria ocultar o conteúdo com a indicação de que se trata de conteúdo gráfico. De novo, quem quisesse assistir já estaria previamente informado.

As medidas acima serviriam para reduzir a exposição de terceiros ao conteúdo que pode ser reputado como ofensivo. Em certa medida, o episódio lembra o ocorrido durante a campanha eleitoral quando o filho do presidente Carlos Bolsonaro se apropriou de uma imagem feita para criticar o seu pai (uma pessoa sendo asfixiada com um saco plástico) e repostou com a adição do texto "sobre pais que choram no chuveiro!".

Guardadas as diferenças entre os dois casos, o processo é o mesmo: algo que já poderia ser reputado como gráfico ou mesmo ofensivo é republicado por uma autoridade, fazendo com que a mesma possa agora ser considerada agente de eventuais danos causados.

Não faltam especulações sobre impactos jurídicos da postagem polêmica. Logo após a publicação, uma hashtag que subiu nos trending topics pedia o impeachment do presidente por crime de responsabilidade. O fundamento seria o artigo 9º, VII, da Lei nº 1079/50, que determina ser crime contra a probidade da Administração "proceder de modo incompatível com a dignidade, com a honra e com o decoro do cargo."

O artigo 14 da mesma Lei determina que é permitido a qualquer cidadão denunciar o presidente ou ministros, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados. Cabe então ao presidente da Casa, atualmente o deputado Rodrigo Maia, receber ou não a denúncia.

Embora reprovem a publicação de conteúdo obsceno por parte do presidente, deputados dos mais diversos espectros já se pronunciaram no sentido de que o caso não geraria um resultado tão drástico como a abertura de um processo de impeachment.

Outro efeito jurídico da postagem, e que chegou a ser comentado na imprensa, seria a aplicação da recém-aprovada Lei da Importunação Sexual (Lei nº 13.718/18). Ela insere o artigo 218-C no Código Penal e estabelece pena de reclusão, de 1 a 5 anos, para quem: "Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia."

A aplicação desse artigo ao caso enfrenta algumas dificuldades.

De início, ele está inserido no Código Penal no capítulo de "crimes sexuais contra vulnerável". Adicionalmente, o ato libidinoso gravado in loco não se sabe por quem, e depois retransmitido pelo presidente, ocorreu com o consentimento dos seus participantes. Ninguém na cena, que em si também pode se caracterizar como um ilícito, estava sendo forçado a nada.

Os protagonistas da cena ainda estavam realizando os atos em local público, no meio do Carnaval, o que reduz sensivelmente qualquer expectativa de privacidade com relação ao fato. Ao contrário, o vídeo parece dar a entender que os seus participantes estavam se expondo para eventuais câmeras e celulares de quem por ali passava. Não por outro motivo devem ter subido no teto de um ponto de taxi justamente para que a performance fosse mais visível.

Esse caráter público do ato libidinoso descarta também a aplicação do artigo 216-B, do Código Penal, que sanciona os atos de "produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes." Como visto, não há nada de íntimo e privado nas cenas retratadas.

Resta então o efeito jurídico relativo ao impacto que a visualização do vídeo pode ter em terceiros que se sintam eventualmente atingidos pelas cenas. Será que o simples ato de visualizar as cenas compartilhadas pelo presidente podem gerar algum dano moral? Usuários no Twitter chegaram a condenar a postagem pelo fato dela ter sido vista por menores de idade. Entra em questão aqui o limite de idade para se usar a rede social, além do debate sobre medidas que poderiam ter mitigado a exposição do conteúdo.

O artigo 186 do Código Civil determina que quem "por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito." E o artigo 927 do mesmo Código afirma que "aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".

Ainda que a possibilidade de indenização por danos morais seja reduzida, vale atentar que quanto mais controvertidas forem as postagens do presidente e de autoridades, maior o risco de que alguém, por razões próprias, venha a se sentir ofendido e ingresse com ações indenizatórias pela publicação. Existem meios para ocultar, denunciar e buscar a remoção de um conteúdo ofensivo nas plataformas. Nos tribunais, existe até mesmo a discussão sobre se a pessoa que alega ter sofrido dano moral por uma publicação chegou a pedir a remoção do conteúdo antes de ingressar com a medida judicial.

Não existe resposta simples aqui porque a diversidade de conteúdos existentes e as suscetibilidades de cada um ao visualizá-los é infinita. Sendo assim, quanto maior for a base de seguidores e maior a viralidade do conteúdo postado, maiores são também as chances de que alguém possa se sentir ofendido pela publicação. Grandes números de seguidores trazem consigo grandes riscos (e responsabilidades).

Por tudo isso, a postagem polêmica do presidente ainda pode surtir efeitos para além do Carnaval. Ainda que esse vídeo não gere repercussões tão graves no campo jurídico como a aceitação de um pedido de impeachment, a polêmica parece ter ligado um alerta para os efeitos jurídicos das postagens feitas na conta presidencial.

Impeachment? Crime? Indenização? Talvez, nesse caso, nenhum dos três. Mas o receio é real de que a pescaria de likes e de retuítes possa mover a conta de autoridades nas redes sociais. Essa estratégia pode funcionar para aquecer o debate em período eleitoral, mas é perigosa como estratégia de comunicação de governo. Como diz a música, "todo samba tem um refrão pra levantar o bloco". Só que agora o Carnaval chegou ao fim.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.