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Carlos Affonso Souza

Se o seu carro falasse, o que ele diria sobre você?

Carlos Affonso

21/11/2018 04h00

Carros inteligentes se interessam pelos dados pessoais de seus motoristas. (Foto: Herbie, o Volkswagen de "Seu meu Fusca falasse")

Estamos cada vez mais acostumados com a ideia de que o celular faz um jogo duplo: por um lado ele é um parceiro, que torna as tarefas do dia-a-dia mais fáceis, mas por outro é um espião, entregando nossos dados de mão beijada para um sem número de empresas.

Geralmente não pensamos muito nisso, mas quantas empresas sabem onde você mora? Você pode imaginar que nesse grupo estão todas aquelas para quem você informou o seu endereço. Mas pense em quantos apps instalados em seu celular estão usando os serviços de localização do aparelho. Essas empresas não apenas podem acompanhar o seu deslocamento durante o dia como também podem identificar o lugar onde o celular passa as noites. Grandes chances de ser essa a sua residência.

Será que o mesmo raciocínio vale para o seu carro? Até pouco tempo atrás os automóveis eram tão desconectados quanto uma torradeira. Você comprava o hardware e o que você fazia com ele não era da conta do fabricante. A Internet tinha pouco ou nada a ver com a forma pela qual o produto era usado.

Vários fatores estão mudando esse cenário. A crise econômica, a viabilização de meios alternativos de transporte e a ascensão dos apps para contratar corridas nas grandes cidades estão reduzindo o número de pessoas que compram carros para ser o principal meio de locomoção. Ao mesmo tempo, a promessa de carros cada vez mais conectados aponta para uma nova e lucrativa oportunidade para as montadoras: explorar os dados gerados pelos automóveis e como eles revelam hábitos de seus motoristas.

Recentemente a General Motors revelou que conduziu uma pesquisa com noventa mil motoristas nas cidades de Chicago e Los Angeles. A montadora analisou como eles escutam rádio enquanto dirigem. Através da ferramenta de upload do carro foi possível monitorar qual era a rádio de preferência, em que momento se trocava de estação, aumentava ou reduzia o volume, dentre outros elementos.

Segundo a GM, foi possível identificar alguns perfis de consumo de mídia, ligando os motoristas de certos tipos de automóveis e determinados estilos musicais e de estações de rádio. Em outro exemplo, foi possível identificar que um motorista que sempre escuta rádios de música country para em cafés da franquia Tim Hortons. Será que uma franquia concorrente não poderia usar essa informação para tentar conquistar esse cliente?

A GM revelou que a pesquisa ainda não tem uma aplicação prática em vista, mas ela aponta para um futuro nada distante em que os automóveis se tornarão cada vez mais um dispositivo de geração e de compartilhamento de dados. O plano das montadoras é transformar o carro no novo Facebook: ao invés de vender os dados de seus usuários, as montadoras poderiam comercializar o acesso aos motoristas, oferecendo mensagens publicitárias customizadas de acordo com os hábitos de direção, geolocalização e consumo de mídia ao volante.

Aplicativos de trânsito já fazem isso, mostrando promoções e outras oportunidades de compra enquanto se navega na batalha diária pelo trânsito das grades cidades. "Notamos que você está preso no engarrafamento. Que tal desviar na próxima esquina e comprar um hambúrguer?"

A pergunta que está na cabeça das montadoras é: como fazer com que o carro seja uma porta de acesso ao motorista para os mais diversos parceiros? Enquanto todo mundo discute câmaras de eco, bolhas e filtros na Internet, a experiência de se passar horas dentro de um carro talvez dê uma conotação física de isolamento que a navegação em redes sociais ainda sonham em alcançar. O mito de independência e de liberdade envolvidos na compra de um carro (insistentemente lembrados nas publicidades de automóveis) só reforça essa impressão.

A noção de que estamos sendo vigiados em nossos carros pode ser assustadora, mas a sua normalização parece ser inevitável, especialmente quando ela vem acoplada em questões de segurança e para voltar vantagens econômicas ao próprio motorista. Seguradoras já usam cada vez mais o monitoramento dos carros para calcular seguros ou dar descontos para os seus clientes. Poderão as montadoras lucrar também com esses dados?

O CEO da Ford, Jim Hackett, não tem dúvidas. Em entrevista recente, ao ser confrontado com um cenário de queda no número de vendas, ele afirmou que o futuro da empresa pode estar justamente na exploração dos dados gerados pelos automóveis e por seus motoristas. No caso da Ford, a empresa também funciona como uma financeira, especialmente nos Estados Unidos, e as relações então desenvolvidas com os seus clientes permitem que a montadora tenha acesso a dados que vão muito além do necessário para a compra de um carro. Cruzar com mais eficiência esses dados com aqueles derivados da condução do automóvel é o próximo passo.

Então ao comprar um carro, talvez seja cada vez mais importante investigar a política de privacidade da montadora. Se o carro permitir algum tipo de monitoramento remoto, vale questionar quais dados são coletados, onde eles serão armazenados e com quem eles poderão ser compartilhados. A ascensão dos carros conectados e, em um futuro próximo, dos carros autônomos, tornará esse dilema cada vez mais real.

Alguns leitores devem se lembrar da série de filmes dos anos setenta iniciada com o clássico "Se o meu Fusca falasse". Os filmes estrelavam o fusquinha Herbie, um Volkswagen cheio de personalidade e que frequentemente tomava as próprias decisões a revelia do seu condutor. A graça dos filmes estava justamente no fato do carro ter vontade própria. Como a vida imita a arte, chegou a hora de perguntar: se o seu carro falasse, o que ele diria sobre você?

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.