Topo

Carlos Affonso Souza

Bendito algoritmo! O outro lado da redação do Enem sobre uso de dados

Carlos Affonso

07/11/2018 14h31

Tudo na vida tem dois lados. Nos dias em que são realizadas as provas do Enem, essa ambiguidade atinge em cheio o brasileiro. Assim que os portões se fecham, a internet começa a ser inundada por fotos e vídeos de pessoas chorando e berrando agarradas nas grades de universidades espalhadas pelo território nacional. É o show dos atrasados: uma tragédia pessoal transformada em espetáculo humorístico.

Rir do desespero alheio é um sentimento conflitante. Por um lado as histórias de atrasos parecem surreais e dignas de um programa humorístico. Quem perdeu o Enem porque foi comer um cachorro-quente que o diga. Por outro lado, dá uma pena enorme ver a pessoa perder os estudos de um ano todo por um minuto de atraso. Saber ver ambos os lados é o que nos torna inteiros.

Além de memes dos que chegaram atrasados e foram abraçados pelo Homem-Aranha, outro assunto que domina a internet no dia de prova do Enem é o tema da redação. Em 2018 o tema escolhido foi "manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados pessoais na internet".

A temática não poderia ser mais atual, já que nesse ano o Brasil aprovou uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) e o debate ganhou repercussão inédita com o escândalo global de uso de dados do Facebook para fins eleitorais pela empresa Cambridge Analytica.

Mas o tema da redação não era sobre proteção de dados como um todo. As leituras que guiaram a realização da questão tinham um foco específico: ela queria falar sobre algoritmos e como eles podem, a partir de dados pessoais, direcionar o comportamento de usuários nas mais diversas plataformas.

Os quatro textos motivadores da redação deram o recado. Foram três matérias jornalísticas e um gráfico do IBGE, esse dedicado aos números do acesso e do uso da internet no Brasil. As reportagens que os alunos leram antes de começar a escrever diziam que a internet "influencia secretamente nossas escolhas" e que os algoritmos são uma "silenciosa ditadura".

Malditos algoritmos! Os gabaritos extra-oficiais que foram divulgados depois de revelado o tema da redação bateram na tecla de que os nossos dados pessoais estão sendo usados para nos oferecer produtos e serviços cada vez mais customizados. Plataformas de streaming de música conhecem o seu gosto musical, as de streaming de vídeos acertam quais novas séries você vai querer ver e as lojas virtuais já avisam que vai sair um livro que você vai querer ler. Isso é assustador? Sim. Mas também não torna a nossa vida mais fácil? Claro!

Ao levantar a bola do tema dos dados pessoais e dos algoritmos a redação do Enem acerta ao forçar especialmente um público mais jovem a refletir sobre os dados pessoais que são fornecidos a todo momento e como eles podem ser usados de maneiras pouco transparentes. Isso é importante porque muitos jovens praticamente não viram um mundo no qual a publicidade não era customizada e comportamental. A banalização da entrega de dados pessoais precisa ser combatida.

Todavia, o próprio uso da expressão "manipulação" no título do tema já encaminha o candidato para uma reflexão negativa. A ideia de manipulação parece direcionar para uma noção quase maquiavélica, que inclui tanto um componente de segredo como uma certa pitada de maldade. Não existe manipulação do bem.

É preciso então não demonizar a ferramenta que está na base de várias aplicações que compõem a cesta básica de uso da rede por qualquer indivíduo. Do aplicativo de mensagens instantâneas à rede social, do app que permite chamar um motorista àquele que aponta o melhor caminho no trânsito. São algoritmos tornam tudo isso possível. Benditos algoritmos!

A redação do Enem pediu que os candidatos apresentassem uma proposta de intervenção sobre o tema. Como os textos motivadores contam apenas metade da história, não vai ser estranho se muitas redações sugerirem leis que impeçam o uso de algoritmos como um todo. Os gabaritos geralmente apontaram que alunos poderiam explorar medidas que incentivassem a transparência na gestão de dados pessoais. Esse equilíbrio parece cada vez mais importante.

Como muitos alunos foram para a prova esperando uma redação sobre fake news e desinformação, o aspecto negativo dos algoritmos é ainda mais ressaltado. Nesse ponto, ao não escolher um tema assumidamente sobre notícias falsas, a prova de redação evitou entrar em polêmicas de uma eleição recém-encerrada. Porém, como ainda correm investigações sobre o uso de dados pessoais para o envio em massa de fake news no período eleitoral, é de se esperar que muitos candidatos levem o tema para os seus textos. O risco aqui é desvirtuar a redação em um posicionamento político-partidário, seja lá qual for.

Por tudo isso, a escolha do tema da proteção de dados pessoais para a redação do Enem gera sentimentos conflitantes. Se por um lado ver o tema alçado como pauta nacional é muito bom, vai ser igualmente importante saber equilibrar as tendências de se tratar o nosso futuro algorítmico ora como uma distopia, ora como salvação.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.