Bendito algoritmo! O outro lado da redação do Enem sobre uso de dados
Tudo na vida tem dois lados. Nos dias em que são realizadas as provas do Enem, essa ambiguidade atinge em cheio o brasileiro. Assim que os portões se fecham, a internet começa a ser inundada por fotos e vídeos de pessoas chorando e berrando agarradas nas grades de universidades espalhadas pelo território nacional. É o show dos atrasados: uma tragédia pessoal transformada em espetáculo humorístico.
Rir do desespero alheio é um sentimento conflitante. Por um lado as histórias de atrasos parecem surreais e dignas de um programa humorístico. Quem perdeu o Enem porque foi comer um cachorro-quente que o diga. Por outro lado, dá uma pena enorme ver a pessoa perder os estudos de um ano todo por um minuto de atraso. Saber ver ambos os lados é o que nos torna inteiros.
Além de memes dos que chegaram atrasados e foram abraçados pelo Homem-Aranha, outro assunto que domina a internet no dia de prova do Enem é o tema da redação. Em 2018 o tema escolhido foi "manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados pessoais na internet".
A temática não poderia ser mais atual, já que nesse ano o Brasil aprovou uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) e o debate ganhou repercussão inédita com o escândalo global de uso de dados do Facebook para fins eleitorais pela empresa Cambridge Analytica.
Mas o tema da redação não era sobre proteção de dados como um todo. As leituras que guiaram a realização da questão tinham um foco específico: ela queria falar sobre algoritmos e como eles podem, a partir de dados pessoais, direcionar o comportamento de usuários nas mais diversas plataformas.
Os quatro textos motivadores da redação deram o recado. Foram três matérias jornalísticas e um gráfico do IBGE, esse dedicado aos números do acesso e do uso da internet no Brasil. As reportagens que os alunos leram antes de começar a escrever diziam que a internet "influencia secretamente nossas escolhas" e que os algoritmos são uma "silenciosa ditadura".
Malditos algoritmos! Os gabaritos extra-oficiais que foram divulgados depois de revelado o tema da redação bateram na tecla de que os nossos dados pessoais estão sendo usados para nos oferecer produtos e serviços cada vez mais customizados. Plataformas de streaming de música conhecem o seu gosto musical, as de streaming de vídeos acertam quais novas séries você vai querer ver e as lojas virtuais já avisam que vai sair um livro que você vai querer ler. Isso é assustador? Sim. Mas também não torna a nossa vida mais fácil? Claro!
Ao levantar a bola do tema dos dados pessoais e dos algoritmos a redação do Enem acerta ao forçar especialmente um público mais jovem a refletir sobre os dados pessoais que são fornecidos a todo momento e como eles podem ser usados de maneiras pouco transparentes. Isso é importante porque muitos jovens praticamente não viram um mundo no qual a publicidade não era customizada e comportamental. A banalização da entrega de dados pessoais precisa ser combatida.
Todavia, o próprio uso da expressão "manipulação" no título do tema já encaminha o candidato para uma reflexão negativa. A ideia de manipulação parece direcionar para uma noção quase maquiavélica, que inclui tanto um componente de segredo como uma certa pitada de maldade. Não existe manipulação do bem.
É preciso então não demonizar a ferramenta que está na base de várias aplicações que compõem a cesta básica de uso da rede por qualquer indivíduo. Do aplicativo de mensagens instantâneas à rede social, do app que permite chamar um motorista àquele que aponta o melhor caminho no trânsito. São algoritmos tornam tudo isso possível. Benditos algoritmos!
A redação do Enem pediu que os candidatos apresentassem uma proposta de intervenção sobre o tema. Como os textos motivadores contam apenas metade da história, não vai ser estranho se muitas redações sugerirem leis que impeçam o uso de algoritmos como um todo. Os gabaritos geralmente apontaram que alunos poderiam explorar medidas que incentivassem a transparência na gestão de dados pessoais. Esse equilíbrio parece cada vez mais importante.
Como muitos alunos foram para a prova esperando uma redação sobre fake news e desinformação, o aspecto negativo dos algoritmos é ainda mais ressaltado. Nesse ponto, ao não escolher um tema assumidamente sobre notícias falsas, a prova de redação evitou entrar em polêmicas de uma eleição recém-encerrada. Porém, como ainda correm investigações sobre o uso de dados pessoais para o envio em massa de fake news no período eleitoral, é de se esperar que muitos candidatos levem o tema para os seus textos. O risco aqui é desvirtuar a redação em um posicionamento político-partidário, seja lá qual for.
Por tudo isso, a escolha do tema da proteção de dados pessoais para a redação do Enem gera sentimentos conflitantes. Se por um lado ver o tema alçado como pauta nacional é muito bom, vai ser igualmente importante saber equilibrar as tendências de se tratar o nosso futuro algorítmico ora como uma distopia, ora como salvação.
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