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Carlos Affonso Souza

Quem é o culpado pelo tsunami da desinformação?

Carlos Affonso

20/10/2018 04h00

Não adianta disfarçar. Existem pelo menos três culpados na longa história de desinformação que vem marcando as eleições 2018: o próprio eleitor (você e eu), os partidos e seus candidatos, e finalmente as plataformas. Cada qual contribuiu do seu jeito para esse resultado.

Eu, você e todo mundo que vota tem a sua parcela de culpa. Faz tempo que notícias falsas circulam pelas redes sociais e saem delas para entrar nas conversas com amigos, nos almoços em família, nas reuniões no trabalho, nas Igrejas, em clubes e praças. Cabia e cabe a cada um de nós ser um agente ativo no combate à desinformação. É quase um dever cívico não deixar o seu parente, seu amigo ou conhecido ficar disseminando notícias falsas.

E o que fizemos? Muitos de nós, cansados de brigar, de arrumar confusão, de se desiludir com pessoas que achávamos que conhecíamos, resolvemos pular fora. Saímos dos grupos de WhatsApp, bloqueamos nas redes sociais, evitamos falar de política nos encontros. Deixa pra lá.

Ao agir assim deixamos essas pessoas falando sozinhas por meses e meses. O radicalismo nasce justamente na ausência do outro. O conteúdo falso e viral precisa exatamente disso: pouca gente para contestar e muita gente para repetir. Temos a nossa parcela de culpa.

O segundo grupo de culpados são os partidos, coligações e seus candidatos. Até aqui fizeram pouco muito para impedir a escalada da desinformação. Ao contrário, a esmagadora maioria usou desse expediente como uma ferramenta para consolidar narrativas favoráveis e criar tantas outras que destruíssem seus adversários.

Ah, mas quem dissemina fake news são os apoiadores, não os candidatos em si! Os partidos e candidatos não têm controle sobre as manifestações dos eleitores. Desculpe, mas lavar as mãos numa hora dessas beira a irresponsabilidade. Cada candidato deveria vir a público e manifestar de forma clara e direta que repudia o envio de notícias falsas, que isso é destrutivo para a qualidade da nossa democracia e que a sua comunicação de campanha vai ativamente coibir o envio desse tipo de material nas redes em que atua (até porque isso pode se voltar contra a própria candidatura).

O que vemos, grande parte das vezes, é o contrário. As campanhas se deliciam com a desinformação alheia, contanto que não seja contra o seu candidato. Ai é tudo "um absurdo!", "como pode isso continuar no ar?", "façam alguma coisa!" e "cadê o TSE?". Campanhas que criam ou toleram fake news são igualmente culpadas.

Por fim, as plataformas têm a sua parcela de culpa. O fenômeno da desinformação não é novo, mas ele está acontecendo de forma diferente no Brasil do que ocorreu nas eleições norte-americanas. Nos EUA o grande vilão foi o direcionamento de anúncios no Facebook a partir de dados usados de forma ilícita. Não se sabia quem pagou por eles, quanto pagou e como as pessoas foram selecionadas para recebe-los. Por aqui, já testando uma transparência maior de olho nas futuras eleições americanas, a empresa passou a exibir algumas informações sobre os anúncios. Além disso, baseada nas regras da plataforma, passou a cancelar contas inautênticas e páginas que haviam sido criadas para inflar conteúdos de modo artificial.

Essa arrumação de casa feita pelo Facebook desarmou parte de uma bomba-relógio de desinformação prestes a explodir. Muita gente reclamou que isso era censura, mas a medida não parece estar proibida pela legislação e estaria dentro da liberdade das empresas. Em se tratando de remoções abusivas, caberia ao prejudicado levar o caso ao Poder Judiciário que poderia condenar a empresa a indenizar pelos danos causados, dentre outras providências.

Mas como aprendemos no filme Jurassic Park: "a vida encontra um jeito". Life finds a way. O vírus da desinformação foi combatido no Facebook, o Twitter também adotou medidas de controle e sobrou para o WhastApp. De aplicativo de troca de mensagens interpessoal, o "Zap" virou uma plataforma de broadcast, de comunicação um-para-muitos.

As campanhas de desinformação fizeram um hack na plataforma. Não no sentido de invadir os seus servidores, mas de transformar a conversa particular em um conjunto de enormes praças públicas nas quais geralmente só se pode receber e repassar a informação. O diálogo não é mais bem-vindo.

Caberia então ao WhatsApp adotar as medidas técnicas para reduzir esse cenário. A limitação do número de compartilhamentos é um primeiro passo, mas as lições da arrumação de casa do Facebook poderiam ter sido assimiladas e usadas no Zap antes do estrago ter sido feito. Assim, entra mais um na dança dos culpados.

Sem precisar recorrer à quebra de criptografia (que causaria mais mal do que bem) ou entrar no conteúdo das mensagens, é possível identificar padrões de usuários que estão abusando da plataforma para enviar mensagens e criar grupos em massa. Esses usuários poderiam ser suspensos ou ter o uso da plataforma restringido. Essas medidas seriam vedadas ou afetariam a liberdade de expressão? Vale o mesmo raciocínio aplicado ao Facebook. Está dentro da liberdade da plataforma aplicar os seus termos de uso. O STJ acaba de reconhecer isso em um caso envolvendo o Mercado Livre.

Ao demorar para agir o WhatsApp acionou a resposta padrão da sociedade para casos de pânico moral na rede: o bloqueio de aplicações. Após reportagem da Folha de São Paulo revelando suposto esquema de compra de envio em massa de mensagens e de criação de grupos  no WhatsApp, o PT e o PSOL ingressaram com pedidos no TSE para investigar as atividades. Além de busca e apreensão de computadores e oitiva dos implicados, os partidos requereram que o Judiciário obrigue o WhatsApp a apresentar plano de contingência para combater a desinformação. Caso não o faça, o aplicativo deveria ter a sua operação suspensa no País até que cumpra a determinação judicial. O PSOL, no mesmo dia, emendou a petição inicial para modificar esse pedido, substituindo a suspensão por qualquer outra medida que o magistrado entenda necessária.

Hoje existe uma decisão no STF, do Ministro Ricardo Lewandoski, que suspendeu as suspensões do WhatsApp. Segundo o Ministro, haveria uma infração ao principio da proporcionalidade quando se bloqueia como um todo uma plataforma por conta de ilícitos eventualmente cometidos através dela por alguns de seus usuários. Lembrou ainda o Ministro o papel da liberdade de expressão, instrumentalizada pelo aplicativo, o Marco Civil da Internet, além do fato de que o próprio Poder Judiciário faz uso do aplicativo para o envio de intimações. Em meio a todo debate sobre desinformação, o que menos se precisava era incluir também a discussão sobre bloqueio de apps.

Então eu, você, seu candidato, o partido dele e as plataformas somos todos um pouco responsáveis por esse cenário de surdez distribuída. Fizemos menos do que era necessário e agora botar a culpa no outro não vai fazer o tempo voltar. Não é preciso ser cientista para perceber que algo está estranho nas redes e na forma pela qual nos comportamos nessas eleições.

Se por um lado a renovação que surgiu das urnas é muito positiva (goste você ou não do resultado), e em grande medida ela revele um enorme desejo de mudança por parte do eleitor, podemos estar diante de uma revolução também na forma pela qual os votos são direcionados. E é isso que precisa ser investigado, especialmente se envolver práticas vedadas pela legislação eleitoral. Se não fizerem nada, as autoridades competentes podem se candidatar para integrar um quarto grupo de culpados. E serão todos eleitos em primeiro turno.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.