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Carlos Affonso Souza

E se você se apaixonasse por um robô sexual?

Carlos Affonso

03/10/2018 04h00

Estamos prontos para ter sentimentos com relação a robôs? E os robôs para com a gente? (Foto: Cena do filme "Ex Machina")

Dizem que o amor só é completo quando ele é correspondido. Amar sem ser amado(a), além de uma grande música da Thalia, causa enorme sofrimento. Como evitar então as frustrações de não se fazer entender pela pessoa amada? Entra em cena a grande questão: e se o objeto do seu afeto fosse mesmo um objeto?

Na mitologia clássica, o escultor Pigmaleão se apaixonou perdidamente uma estátua. O criador, desiludido com as mulheres reais, passava o dia com a sua obra, conversava com ela, a vestia e a alimentava. Apiedada da situação, a deusa Afrodite transformou a estátua em mulher. Pigmaleão e Galathea puderam assim concretizar o seu amor e tiveram uma filha.

No século dezessete, com a expansão marítima dos reinos europeus, começou a aparecer um arremedo de tecidos que os tripulantes das grandes navegações levavam nas longas viagens. Chamadas de dame de voyage, muitos enxergam nessas bonecas de trapo a ancestral das bonecas eróticas. Quando o comércio entre os holandeses e japoneses se tornou mais frequente, as bonecas acabaram também desembarcando no extremo oriente. Essa seria uma das explicações porque bonecas sexuais são também conhecidas como "Dutch Wives", ou as "esposas holandesas".

Mas seria possível transformar o desejo, suprido por um objeto, em algo mais? É possível que relacionamentos sinceros surjam do contato entre pessoa e coisa? A imprensa está repleta de episódios, tratados com maior ou menor seriedade, em que são retratadas pessoas que optaram por ter um relacionamento amoroso (e muitas vezes sexual) com objetos.

Tem homem que vive maritalmente com boneca sexual (na verdade com duas, mas apenas uma é a esposa oficial). Japonês que se casou com personagem de jogo de vídeo-game de simulação de relacionamentos (date simulators). Outro que se casou com uma almofada cujo estofado tem a impressão de uma personagem de anime. Qual seria o papel da tecnologia na construção desses vínculos?

O tema dos robôs sexuais é onipresente na cobertura sobre inteligência artificial. Estamos ainda muito longe de reproduzir um robô sexual que efetivamente possa se passar por humano, mas existem alguns protótipos, mais perto ou mais distante de sua comercialização, que chamam a atenção. Em várias cidades existem lojas que permitem alugar bonecas sexuais por um período de tempo. Para promover o negócio, não faltam menções de que esses lugares seriam como um "bordel de robôs sexuais". Nada mais distante da realidade, embora o tema tenha gerado controvérsia em cidades como Paris, Londres, Turim e Houston.

A boneca Harmony, uma produção da Realbotix, juntou a expertise de uma das principais empresas de fabricação de bonecas(os) sexuais com o desenvolvimento de inteligência artificial. Desprovida de movimentação própria que se pareça com qualquer humano (a locomoção é um dos grandes obstáculos da robótica, por mais impressionantes que sejam os avanços da Boston Dynamics), a robô pode ser comandada pelo celular, alterando o seu comportamento e padrões de resposta.

Enquanto os robôs sexuais não são uma realidade, o debate sobre o seu desenvolvimento só aumenta. Uma campanha contra os sex robots advoga que a sua inserção na sociedade apenas reforçará o estereótipo de submissão das mulheres, já que a imensa maioria dos bonecos sexuais hoje é produzida na forma de mulheres.

Profissionais envolvidos na fabricação desses protótipos defendem o contrário, que a segurança permitida pelo contato com uma boneca (ou com um robô) poderia ajudar pessoas a desenvolver afeto, sempre lembrando que a boneca não seria uma pessoa, mas apenas uma coisa. Por mais que ela se pareça com um ser humano.

A semelhança com humanos é o ponto crucial de uma teoria que procura entender como nós reagimos ao desenvolvimento de robôs e outras reproduções da aparência e do comportamento humano. Em 1970 o professor de robótica Masahiro Mori cunhou a tese que viria a ser conhecida como "vale da estranheza". Segundo essa teoria, quanto mais um robô se torna parecido com o ser humano mais favorável e empática seria a sua aceitação.

Esse processo, contudo, sofreria uma reviravolta ao chegar em um ponto no qual a semelhança seria tão próxima da humana que o observador passaria a repudiar o robô (gerando medo ou apenas críticas acentuadas justamente naquilo que o diferencia de um ser humano, retratando isso como uma grave imperfeição). Esse distanciamento seria atenuado com o tempo, já que passaríamos a nos acostumar com robôs que se parecem e se portam de forma muito semelhante a um humano. A imagem do vale vem justamente desse crescimento na aceitação, que tem um forte declive com a repulsa, para que depois possa subir de novo.

Não precisamos ir muito longe e esperar os robôs quase humanos estejam nas ruas para testar a teoria. Muita gente não gostou da cena do filme Rogue One em que aparece a Princesa Leia, reconstituída em imagens computadorizadas. Ela se parece com a atriz Carrie Fisher, já falecida, quando a mesma interpretou a personagem na trilogia original? Sim! Mas ela é tão perfeita a ponto de você acreditar que aquela é a atriz humana? Não! E isso, e apenas isso, tornou para muitos a cena artificial, desnecessária, sendo repudiada quando justamente se esperava dali tirar um gancho emocional da narrativa. A versão digital da atriz era bastante parecida com um humano, mas não o suficiente para ser aceita.

Ao debatermos o futuro do sexo com robôs, é importante perceber que se está lidando com pessoas de verdade que desenvolvem ligações com esses objetos. Já existe até mesmo uma discussão sobre dar a robôs inteligentes uma forma de personalidade jurídica, mas isso transcende o objetivo desta conversa. Outros debates procuram entender como robôs sexuais poderão ser úteis para satisfazer os desejos de pessoas com restrições de movimento. Essa finalidade em si mesma justificaria o desenvolvimento desses objetos.

Até lá, precisamos encontrar uma forma de lidar com o tema para além das piadas e das caricaturas. Como vamos tratar esses sentimentos, que são reais, mas que foram gerados em relacionamentos artificiais? E quanto mais avança a inteligência artificial, será que também não precisamos perguntar se e como o sentimento é correspondido pelo robô?

Nas próximas semanas vamos abordar outros temas que envolvem o futuro do afeto e as novas tecnologias. Começaremos com a renovação dos date simulators e como as ferramentas desses games passaram a invadir a "vida real" dos jogadores, com personagens que mandam mensagens, ligam no seu telefone e passam a noite em um grupo de mensagens. E você achando que já tinha mensagens suficientes para responder! Mystic Messenger é só o começo.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.