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Carlos Affonso Souza

MP dos Caminhoneiros impõe controle sobre a internet

Carlos Affonso

09/07/2018 04h18

MP faz parte do acordo que encerrou a greve dos caminhoneiros (Foto: Senado Federal)

 

Você tem ou pretende ter um site ou aplicativo no qual os usuários podem postar textos, fotos e vídeos? É melhor você se atualizar sobre o preço mínimo do transporte rodoviário de cargas. Esses dois assuntos, que parecem tão distantes, acabaram de se misturar perigosamente no Congresso Nacional.

A paralização dos caminhoneiros foi um dos acontecimentos mais marcantes de 2018. Com o desabastecimento dos grandes centros urbanos e as reivindicações da categoria ganhando o noticiário, o Governo Federal procurou apresentar soluções que pudessem dar um fim ao impasse. Dentre as reclamações dos caminhoneiros estava a publicação periódica de uma tabela com o preço mínimo do frete.

A Medida Provisória nº 832, de 2018, fez exatamente isso. O seu artigo 5º determina que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) publicará "norma com os pisos mínimos referentes ao quilômetro rodado na realização de fretes, por eixo carregado, consideradas as distâncias e as especificidades das cargas definidas no art. 3º, bem como a planilha de cálculos utilizada para a obtenção dos respectivos pisos mínimos."

O § 4º do mesmo artigo estabelece que o não cumprimento do preço mínimo "sujeitará o infrator a indenizar o transportador em valor equivalente ao dobro do que seria devido, descontado o valor já pago, sem prejuízo de multa a ser aplicada pela ANTT."

Onde é que entra a internet nesse cenário? A Comissão Mista, criada no Congresso Nacional para analisar a Medida Provisória, tratou de inserir uma nova redação no texto original, acrescentando que também respondem subsidiariamente pelo frete cobrado em desconformidade com a tabela "os responsáveis por anúncios de ofertas de frete".

Essa disposição vai na direção contrária das mais diversas decisões judiciais que, por exemplo, isentam o jornal da responsabilização pelos anúncios publicados em seus classificados. Mas logo em seguida vem a nternet. O parágrafo único do novo artigo oitavo está assim redigido:

Parágrafo único. Também respondem subsidiariamente os responsáveis por plataforma tecnológica por meio de internet, aplicativo ou outra tecnologia, que permita ou possibilite a veiculação dos anúncios a que se refere o caput."

A redação tornaria responsável qualquer rede social, site de vídeo, blog ou aplicativos nos quais qualquer pessoa pudesse publicar um anúncio de frete (em desconformidade com a regulação). Mas será então que toda empresa e pessoa física que explora um site ou aplicação na rede vai ter agora que saber como funciona a tabela do frete?

Essa disposição vai contra a regra em vigor desde 2014 no Brasil com a aprovação da Lei nº 12.965, também conhecida como Marco Civil da Internet (MCI). No seu artigo 19, o MCI determina que provedores de aplicação apenas podem ser responsabilizados civilmente caso não retirem conteúdo que o Poder Judiciário decidiu ser ilícito e que, por isso mesmo, ordenou a remoção. Não cabe aos provedores decidir o que é e o que não é ilícito: essa é a função do Judiciário, que pode mandar remover conteúdo até por decisão liminar e proferida nos Juizados Especiais.

Por isso a redação da Medida Provisória parece ir contra a própria lógica da internet. Se todos passarem a precisar saber quanto é frete mínimo para não ser responsabilizado por anúncios irregulares, o Congresso pode estar abrindo a porteira para que outros conteúdos também passem a gerar a responsabilização dos provedores caso sejam postados por seus usuários. Como advogado, quando atender clientes interessados em abrir uma startup que permita postagens de usuários, como fotos ou vídeos, tratarei logo de perguntar: "Mas vocês sabem qual é o preço mínimo do frete, não é mesmo?"

O importante aqui é compreender como essa responsabilização expandida vai contra a lógica da rede (e dos sites cujo conteúdos são, na verdade, postagens de terceiros), afronta a regra estabelecida no Marco Civil da Internet e cria um precedente que viabiliza cada vez mais controle na rede, com impactos sobre a inovação.

Ao responsabilizar o provedor pelo anúncio irregular de frete, a legislação obriga qualquer um que for criar um site ou app que dependa de conteúdo alheio a não apenas saber o preço mínimo do transporte rodoviário de cargas, como também desenvolver meios para que tais anúncios não sejam postados. Como isso será feito? Com filtros de palavras-chave ou com a dedicação de um funcionário para varrer a plataforma e verificar se porventura algum usuário não resolveu postar um anúncio de frete?

Hoje é com o frete, amanhã é com qualquer outro conteúdo.

Vale lembrar que essa redação já foi aprovada na Comissão Mista e que está para aprovação nessa semana no Plenário na Câmara. Só resta torcer para que, mesmo com o coração disparado, o Congresso ande com cuidado e não arrisque na banguela.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.