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Carlos Affonso Souza

Três previsões sobre a Libra, a moeda digital do Facebook

Carlos Affonso

24/06/2019 04h00

O Facebook anunciou a criação de sua moeda digital, a Libra, que deve começar a circular em 2020. Desde então o que não faltou foram especulações precoces sobre o sucesso ou fracasso da iniciativa, debates sobre seus aspectos técnicos e palpites sobre os impactos regulatórios. Para não ficar de fora da conversa, resolvemos também fazer algumas previsões sobre o futuro da Libra. Alguém me cobra depois de 2020, tá?

  1. A Libra vai pegar em países com população incluída digitalmente, mas altamente desbancarizada.

Deixa eu contar uma história pessoal. Em 8 de novembro de 2016 eu estava em Hyderabad, na Índia, a trabalho com amigos. O plano era aproveitar alguns dias depois das reuniões e pegar um avião para Nova Déli, fazendo o circuito turístico que incluía uma visita ao Taj Mahal.

A ideia já parecia um programa de índio porque queimadas na região e resíduos dos fogos de artifício lançados nas comemorações do Diwali tinham elevado o nível de poluição do ar em Déli a um estado crítico. Enquanto isso, na cidade de Agra, um nevoeiro gigantesco engolia o Taj Mahal nas fotos dos pobres turistas.

Como preparação para a viagem, tínhamos acabado de trocar os nossos dólares por rúpias. O funcionário da casa de câmbio foi legal e trocou tudo por notas de mil rúpias, a mais popular. Pouco depois de dez da noite, durante o jantar do último dia de reuniões, chegou uma mensagem por WhatsApp: "Vocês viram que o governo cancelou o dinheiro, né?"

O primeiro ministro Narendra Modi tinha acabado de entrar em cadeia nacional e anunciado que, como medida para combater a corrupção e a falsificação da moeda, as notas de mil rúpias não seriam mais aceitas a partir de meia-noite (ou seja, em duas horas). Todas pessoas, indianos e turistas, teriam que ir a agências bancárias trocar as suas notas antigas por novas, existindo ainda um limite de trocas diário.

Aí bateu o desespero. Voltamos para o hotel e, ao chegar na recepção poucos minutos depois da meia-noite, o amigo do balcão não quis nem saber do nosso dinheiro como meio de pagamento das diárias. Viramos a madrugada cancelando a viagem e arrumando um jeito de escapar da Índia. Enquanto isso, na televisão, as notícias davam conta de que, surpreendentemente, Donald Trump era o novo Presidente dos Estados Unidos. O mundo parecia estar virando de ponta-cabeça.

De manhã, com a troca de guarda na recepção do hotel, o gerente topou, depois de muita insistência, gritos e alguma humilhação, aceitar o nosso dinheiro que havia sido cancelado. Ele poderia fazer várias incursões ao banco para trocar aquelas cédulas; nós não. O preço dessa transação foi a gente fazer belos reviews sobre o hotel no Tripadvisor, algo que nunca fizemos.

Não demorou dois dias para começarem a aparecer os relatos de mortos e feridos nas confusões que se formaram nas agências bancárias indianas. Uma pessoa chegou a atear fogo no próprio corpo em protesto contra a medida que forçava uma população gigantesca a ir a um banco para trocar dinheiro. Isso não era natural em uma economia em que as pessoas simplesmente não possuem contas bancárias e as transações são geralmente feitas em dinheiro vivo.

A Libra pode ser um grande sucesso em países como a Índia. Segundo país mais populoso do mundo, ela reúne dois elementos fundamentais para o êxito da moeda digital do Facebook: uma população imensa que já usa o WhatsApp no dia a dia e que é altamente desbancarizada. Na medida em que você introduz um componente monetário em um ambiente no qual as pessoas já estão, não é difícil ver como elas podem acabar preferindo usar a Libra do que recorrer à burocracia (e lidar com as taxas) envolvidas na abertura de uma conta bancária.

O foco da Libra não está mesmo nos países desenvolvidos. Ela pode até fazer sucesso nos Estados Unidos e na Europa, mas o impacto mais profundo vai ser sentido em países em desenvolvimento que contam com esses fatores de inclusão digital e ausência de uma cultura bancária. Com mais de um bilhão de usuários espalhados pelo mundo, a base instalada do WhatsApp surge como uma imensa clientela em potencial.

O mesmo raciocínio vale para países com moedas mais fracas do que a cesta de ativos que compõem a reserva da Libra. Dadas as condições certas, da África até a América Latina, a Libra poderá ganhar terreno e virar uma moeda mais confiável e mais prática, já que estará embarcada em aplicações populares.

  1. A Libra vai ser proibida em alguns países, reacendendo o debate sobre bloqueio do Facebook

Onde está a oportunidade de expansão da moeda digital também está o perigo. Justamente países com moedas frágeis, nos quais os respectivos bancos centrais seguem as ordens pouco ortodoxas de governos populistas, tendem a ver com preocupação o surgimento de uma nova moeda digital global. Não será surpresa se, ao se consolidar como uma moeda usada de fato pela população de um desses países e com isso mexer com a economia local, governos passem a proibir o uso da Libra em seu território.

Por mais que o Facebook tenha tomado cuidados em separar a governança e a operação da Libra daquela relacionada com os serviços de rede social, isso pode não ser suficiente para que governos, visando impedir o uso da moeda digital, começassem a bloquear as aplicações do Facebook, como a própria rede social, além de Instagram e WhatsApp.

Nesse sentido, o aspecto disruptivo da Libra pode fazer com que os debates sobre bloqueio de aplicações ganhem um novo round. Depois de chacoalhar o mundo com novas formas de disseminação de conteúdo, agora o Facebook parece determinado em seguir em uma direção ainda mais impactante. Uma vez transformada a nossa relação com a informação (e tudo mais que veio associado a isso), entra em cena a revolução da forma pela qual as pessoas lidam com o dinheiro. Muita gente não vai gostar dessa mudança e enxergar no bloqueio das aplicações um atalho para impedir que a Libra se estabeleça.

Da mesma forma que a ascensão das redes sociais gerou novas formas de comunicação, mas também impulsionou a formação de bolhas e a disseminação de notícias falsas, é de se esperar que a inserção de uma moeda digital global tenha os seus efeitos colaterais. Resta saber quais serão e como governos, empresas e sociedade civil vão reagir aos mesmos.

  1. A Libra vai educar as pessoas sobre Bitcoin e criptomoedas  

Um dos debates mais quentes sobre o futuro da Libra é como essa nova moeda digital vai conviver com o Bitcoin. Na verdade, as duas se assemelham muito pouco, já que, a partir das informações reveladas, a Libra não se parece com uma blockchain aberta, pública, neutra e resistente à censura. A Libra, pela vinculação com outras moedas, como dólar e euro, tende a ser mais estável, enquanto o Bitcoin continuará a atrair investidores interessados em lucrar com as suas oscilações.

É de se esperar que a Libra tenha uma curva de aprendizado mais convidativa, até porque ela já parte de uma base instalada em aplicativos populares como WhatsApp e Messenger. Nesse sentido, a sua introdução pode certamente ser um golpe de misericórdia para empresas cujo objetivo é a realização de transferências de dinheiro. Mas isso não necessariamente afeta a atratividade do Bitcoin como uma oportunidade de investimento.

Caitlin Long lembra que a introdução do Petro, a criptomoeda venezuelana, pelo governo de Nicolás Maduro acabou sendo um dos fatores que estimularam a população local a começar a usar Bitcoin.

Quem sabe a inserção da Libra não acabará servindo como uma escada para que as pessoas possam começar a conhecer e a usar mais criptomoedas? Dessa forma, embora fadadas a serem comparadas a todo momento, a relação entre Libra e Bitcoin pode acabar sendo benéfica para ambos os lados. Será que a Libra acelerará a hiperbitcoinização do mundo? Seja lá qual for o resultado, tudo indica que a nossa relação com o dinheiro está mesmo prestes a mudar.

No horóscopo, o signo de Libra é representado por uma balança. Ele rege as pessoas que não estão nem lá nem cá, procurando equilibrar cada lado dos pratos para manter-se estável. Na balança que tem de um lado governos e bancos tradicionais e de outro as criptomoedas descentralizadas, a Libra pode acabar fazendo jus ao seu nome.

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Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.