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Carlos Affonso Souza

O que Mark Zuckerberg aprendeu com o Império Romano?

Carlos Affonso

12/06/2019 04h00

Nada é mais atual e controvertido do que o Império Romano. Muita gente pensa que o passado ficou para trás e que só o futuro merece atenção. Pode entrar, Milan Kundera, e venha nos lembrar que o passado "está cheio de vida, louco para nos irritar, provocar e insultar, incentivando a sua destruição ou reconstrução. A única razão pela qual as pessoas querem controlar o futuro é para poder mudar o passado".

Se falta certeza sobre os rumos das reformas em análise no Congresso, o que não tem faltado recentemente são menções ao Império Romano nas comunicações políticas. Ao celebrar a marca de 300 mil seguidores no Twitter, o chanceler Ernesto Araújo agradeceu pelo apoio ao governo e tuitou "Tantae molis erat Romanam condere gentem (Eneida, I, 33) Tmj". A exclamação, retirada do poema Eneida, de Virgílio, se traduz como "tão difícil era fundar a nação romana". O "Tmj" que vem a seguir é uma adição moderna.

Andou circulando no Twitter um vídeo da deputada Caroline de Toni alertando para o fato de que "poucos sabem, mas vivemos hoje uma nova Pax Romana, não por meio de armas, mas por ideias nefastas". O alvo das críticas é a ONU, que estaria quebrando a soberania das nações em prol da formação de um governo global.

A incursão dos políticos no mundo clássico não é exclusividade nossa. O principal articulador da campanha presidencial de Donald Trump em 2016, Steve Bannon, é apaixonado pela obra de Marco Aurélio. Apoiado no "História do Declínio e Queda do Império Romano", de Edward Gibbon, publicado em 1776, Bannon afirmou ainda que enxerga nos Estados Unidos de hoje muitas das causas que levaram à ruína romana. Ele não está falando da obscuridade sobrenatural, citada por Gibbon como um dos motivos, mas sim do expressivo aumento do número de imigrantes. Vale só lembrar que, segundo o mito, as origens de Roma remetem ao príncipe troiano Eneias, um imigrante que chegou por aquelas terras fugindo dos horrores da guerra. Roma foi fundada por um imigrante.

O passado clássico virou mesmo um campo de disputa interpretativa. Não apenas sobre as mensagens que ele envia, mas também como nós o retratamos. A autora Mary Beard se meteu em uma confusão no Twitter ao defender um vídeo escolar da BBC sobre uma família nos tempos em que a Bretanha era romana. Qual era o problema do vídeo? O pater familias (o chefe da família) era negro. Muitos viram isso como uma revisão histórica e a autora entrou na conversa para explicar que havia alguma diversidade étnica na época e que um negro poderia ser um membro da elite. Bom, Sétimo Severo, que foi um importante imperador romano, nasceu na atual Líbia, no norte da África. Caucasiano ele não era.

Ainda na questão sobre cor da pele e o mundo antigo, um dos debates mais quentes nas redes é a noção de que o branco do mármore usado nas estátuas clássicas acabou reforçando, especialmente a partir do século XIX, uma noção de superioridade estética branca, afirmando assim um ideal de beleza a ser seguido. Isso sem falar nos estudos de Dora Zuckerberg, irmã de um outro Zuckerberg, sobre como as redes sociais usam elementos do mundo clássico para reforçar visões machistas do mundo.

Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus Zuckerberg?

Por falar em Mark Zuckerberg, ele também já deu a sua contribuição para a conversa sobre apropriação do passado clássico. Em entrevista para a New Yorker, o criador do Facebook revelou a sua obsessão pela figura do imperador romano Augusto. A fixação é tamanha que, ao passar a sua lua-de-mel em Roma, confidenciou que sua esposa suspeitava que havia três pessoas naquela viagem: ela, ele e Augusto. O nome da filha do casal, August, não deixa de ser uma referência ao imperador.

Augusto foi o responsável pela criação da Pax Romana. Através de sucessivas conquistas e da eliminação de adversários, o primeiro imperador legou à Roma uma estabilidade que superou as últimas décadas de guerra civil que erodiram a República. Do lado de fora do seu mausoléu, a partir do elenco de suas façanhas, Augusto dá a dica sobre como governar bem: entretenha o povo, construa muitas edificações e conquiste os seus oponentes.

Ainda na entrevista, Zuckerberg mostrou que entende como a menção a Augusto pode ser polêmica. "Basicamente, através de uma abordagem realmente dura, ele estabeleceu 200 anos de paz mundial" – explicou Zuckerberg. Ele ponderou: "Quais são os trade-offs nisso? Por um lado, a paz mundial é um objetivo de longo prazo que as pessoas falam hoje; por outro lado, isso não veio de graça, e ele teve que fazer certas coisas."

Não faltou quem visse nisso alguma indicação sobre como Mark Zuckerberg vê o futuro e o seu papel na construção desse cenário. Existe diferença entre conhecer e tirar lições da trajetória de grandes figuras históricas e simplesmente querer emulá-las no tempo presente.

De largada já existe um enorme clubismo ligado à pessoa de Augusto quando comparado ao carismático Marco Antônio, seu colega na divisão de poderes dentro do Triunvirato, sistema que antecedeu a ruptura política que levaria ao Império. Augusto é usualmente retratado como um político ardiloso, dedicado e cerebral. Antônio, por outro lado, é mais lembrado por campanhas militares, por sua relação com Julio César e o seu relacionamento amoroso com Cleópatra. Tomar um lado da disputa é quase uma obrigação para quem lê sobre os últimos dias da República romana. A História não gosta dos isentões.

Quando subiu ao poder, Augusto se mostrou ainda um mestre da propaganda. Suas estátuas retratam sempre o rosto de um jovem soberano. Ainda que tenha governado por 41 anos. Para quem mora em São Paulo, existe uma estátua de Augusto logo ali no Largo do Arouche. Não deixa de ser irônico ver o imperador tentando impor o seu tino autocrático no meio daquela confusão.

Lá se foi um bom tempo entre o mestre da propaganda na Antiguidade e o homem que criou uma rede social ancorada no compartilhamento de dados e na publicidade customizada. Se Mark Zuckerberg quer ser um novo Augusto – e se a gente deveria se preocupar com isso – nem parecem ser as perguntas mais acertadas. O mais importante é perceber como cada um de nós (e o Mark Zuckerberg) compreende as mensagens do passado. O que ali se enxerga, quais lições podem ser tiradas e como elas inspiram uma visão de mundo que se projeta para o futuro. Essas são as questões que nos permitem entender como a disputa pelo passado determina o que está por vir.

Alea jacta est. TMJ.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.