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Carlos Affonso Souza

Os 5 hábitos dos brinquedos altamente conectados

Carlos Affonso

13/03/2018 10h42

Bonecas LOL utilizam técnicas de unboxing para causar surpresa

 

Em qual idade a criança pode começar a usar a internet? Não é raro ver pais apregoando que a idade certa é essa ou aquela com base em alguma pesquisa (inglesa) publicada com alarde ou com base na sabedoria milenar da semana passada. A preocupação, contudo, é legítima: eles não querem expor seus filhos ao mundo aberto da rede antes que eles estejam preparados para isso.

Acontece que essa pergunta faz cada vez menos sentido. Enquanto nos preocupamos em encontrar essa mítica idade ideal, a internet encontrou um jeito de chegar mais cedo na vida das crianças. Essa invasão já está em curso com os chamados brinquedos conectados. São bonecas, carrinhos e jogos que cada vez mais dependem da internet para funcionar.

Mais do que isso, eles também coletam, armazenam e utilizam dados e informações pessoais das crianças. Muitos deles usam esses dados para oferecer as funções mais atrativas, como a boneca que entende o que está sendo perguntado e desenrola a conversa como se uma amiga fosse.

Outros brinquedos e jogos, por sua vez, encontraram formas de promoção cada vez mais efetivas na rede (com os influenciadores digitais e vídeos de unboxing) ou se aproveitaram da onipresença da internet pra oferecer recompensas diárias.

Os brinquedos e jogos conectados existem em todas as faixas de preço e as opções só tendem a crescer nos próximos anos. Será então que o futuro da diversão para crianças passará necessariamente pela internet? Ainda que estejamos na pré-história dos brinquedos conectados, algumas estratégias já começam a ficar bem claras.

1. Influência :: A decisão pela compra do brinquedo ou jogo, na maior parte das vezes, cabe aos pais. Justamente por isso, a publicidade de brinquedos deve ser dirigida a eles e não às crianças, certo? Como explicar então a profusão dos influenciadores mirins que, falando de criança para criança, postam uma infinidade de vídeos no YouTube e nas redes sociais comentando os novos lançamentos?

Uma parcela desses vídeos é de produção espontânea: são crianças exibindo seus brinquedos e jogos enquanto fazem uma minuciosa resenha sobre detalhes técnicos e o impacto emocional do produto; outra é dedicada aos vídeos que são produzidos depois da marca responsável pelo brinquedo ter enviado o mesmo a título de cortesia ou como cumprimento de uma verdadeira parceria empresarial.

O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária decidiu diversas vezes que publicações e vídeos nas redes sociais que surgiram das mais tênues formas devem incluir um aviso de que se trata de publicidade. A regra não é isenta de complexidades, mas a celebridade fitness Gabriela Pugliesi, por exemplo, já foi alvo de algumas decisões ao postar foto sorrindo ao lado de uma long neck de cerveja (com baixas calorias) ou ao promover uma clínica de tratamentos estéticos. Tinha que ter o #publipost.

Mas o que fazer no caso dos influenciadores mirins? Como saber o que é uma publicidade disfarçada ou uma simples vontade da criança de se comunicar em tempos em que YouTuber virou profissão?

Não são poucas as empresas que já perceberam esse nicho e, com todas as restrições existentes para a publicidade em outros meios, migraram sua atenção para os influenciadores mirins. O mais recente sucesso dessa leva são as bonecas LOL Surprise, que não apenas se valeu de influenciadores digitais para despertar atenção, como também agrega uma segunda qualidade: a surpresa.

2. Surpresa :: Uma linha de brinquedo que leva a palavra surpresa no título deve ter algo a ensinar sobre o tema. As bonecas LOL são vendidas dentro de uma bola que vem envolvida em várias camadas que precisam ser retiradas uma a uma, revelando aos poucos os acessórios da personagem que está em seu interior. Primeiro vem um papel com dois símbolos que oferecem uma pista, depois adesivos, em seguida os sapatos, logo mais acessórios, então é descoberta a boneca em si, comumente acompanhada de uma mamadeira. Surpreendente.

O trabalho arqueológico de revelação da boneca evidencia não apenas o papel da surpresa, mas também se junta a outro fenômeno que cresce junto com os influenciadores mirins: os vídeos de unboxing. O termo, que significa "tirar da caixa", é empregado para designar os vídeos em que produtos são comentados enquanto o seu comprador abre a embalagem e geralmente faz o primeiro uso. Proveniente da febre dos novos smartphones e produtos de informática, a prática chegou para ficar no segmento de vídeos infantis na rede.

O unboxing ritualiza o recebimento de um presente ou de uma compra. Não é o nosso objetivo aqui entrar na antropologia dos recebidos, mas vale registrar que brinquedos começam a investir cada vez mais na surpresa de se abrir uma caixa. E se essa surpresa puder ser filmada e disseminada, tanto melhor.

Outros brinquedos, especialmente os que estimulam a coleção, já se valem do elemento surpresa para estimular compras reiteradas até se completar a série. Criadas em países asiáticos, as máquinas de gashapon oferecem essa experiência. O nome ("gasha") reproduz o som que a máquina faz ao dispensar a bola ou a embalagem dentro da qual está o brinquedo, cuja identidade se desconhece. Personagens de animes, chaveiros, porta-copos e tudo mais que couber dentro de uma bola pode ser obtido em uma máquina gasha.

A lógica da surpresa está em franca expansão, especialmente se associada a uma outra qualidade: a recompensa. Nesse quesito, os games online são campeões.

3. Recompensa :: Servir bem para servir sempre. Como fazer que a criança continue dedicando a sua atenção ao brinquedo ou ao jogo? Os jogos online embarcados em celulares e demais dispositivos móveis já aprenderam que precisam que o jogador volte todo dia na expectativa que ele continue a se envolver com o game. Quem sabe assim, para destravar novas fases, habilidades ou recursos ele não acaba optando por pagar? Usualmente essas conquistas poderiam ser adquiridas com muito mais horas de jogo. Mas em tempos de imediatismo por que não pagar um pouco para adquirir uma pequena recompensa?

Os jogos online, como estão embarcados em dispositivos móveis que estão ao lado da pessoa praticamente o tempo todo precisaram aprimorar a habilidade de oferecer recompensas e garantir a dedicação do jogador. A solução? Muitos passaram a adotar as chamadas recompensas diárias. Faça login todos os dias ou simplesmente entre no jogo para ganhar alguma coisa. Quem não quer?

4. Troca :: O que acontece se a surpresa ao abrir a caixa não for boa? E se brinquedos que envolvem coleções começam a frustrar por nunca sair o modelo desejado? Muitos jogos e brinquedos apostam na criação de um vigoroso mercado secundário que mantém o produto relevante por mais tempo. Assim, voltando ao caso das bonecas LOL, as comunidades de troca das bonecas repetidas só faz crescer. A internet, dessa forma, apenas viabiliza e expande as possibilidades de encontrar exatamente o que se quer. É o mesmo efeito dos encontros para trocar figurinhas repetidas do álbum da Copa.

5. Transformação em dados :: O último hábito dos brinquedos altamente conectados é o com o qual começamos esse texto. Os brinquedos que interagem com a criança, como bonecas ou jogos, coletam, armazenam e tratam dados. Em última instância, a diversão se transformou em um processo de criação de bases de dados. Quantas vezes a criança acessou o brinquedo? Quais informações ela trocou com ele? Quem tem acesso a essa comunicação e onde os dados são armazenados? O que pode ser feito com eles além de melhorar a performance do brinquedo e do jogo?

Existe um debate complexo sobre o consentimento dos pais e responsáveis para o tratamento de dados pessoais de seus filhos. Ainda que os pais tenham consentido com o uso do brinquedo e mesmo instalado um app que permite aos mesmos controlar a brincadeira, por exemplo, existem áreas nebulosas. O que acontece se uma outra criança está brincando junto e também se comunica com a boneca ou com o jogo? Os pais ou responsáveis da segunda criança podem nunca ter consentido com a coleta e tratamento desses dados. Existe alguma exceção aqui ou será que estamos nos preocupando demais?

De todo modo, enquanto cada vez mais brinquedos e jogos se conectam à rede, mais cedo as crianças, de uma forma ou de outra, também passam a estar. Duas certezas que saem desse cenário é a transformação das práticas de diversão e os desafios constantes para a proteção da privacidade.

Quando a criança deve entrar na internet? Grandes chances dela já estar lá.

Sobre o autor

Carlos Affonso é Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e professor da Faculdade de Direito da UERJ.

Sobre o blog

A Internet e as novas tecnologias estão transformando as nossas vidas. Mas quem decide se a rede será um instrumento de liberdade ou de controle? Esse é um blog dedicado a explorar os impactos da inovação tecnológica, sempre de olho nos desafios nacionais e na experiência de diferentes países em tentar regular uma rede global. As fronteiras da tecnologia você lê aqui.